acatar ou não

Afastamento de Wilson Santiago depende do aval da Câmara dos Deputados; entenda

O afastamento do deputado federal Wilson Santiago (PTB), solicitado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após a Operação “Pés de Barro”, da Polícia Federal, vai depender da Câmara dos Deputados, que tem o poder constitucional de acatar ou não o afastamento do parlamentar.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em outubro de 2017 dar ao Legistativo a palavra final sobre a suspensão do mandato de parlamentares pelo Judiciário.

Entenda

A Constituição Federal concede aos deputados federais e senadores, além da prerrogativa de foro para que sejam julgados pelo Supremo Tribunal Federal em matéria criminal, a imunidade relativa à prisão (freedom from arrest), segundo a qual esses parlamentares só podem ser presos em flagrante por crime inafiançável, ficando essa prisão sujeita à confirmação pela Casa respectiva (art. 53, § 2º). O texto constitucional em nenhum momento faz referência a outras possibilidades cautelares de encarceramento, como as prisões temporária e preventiva.

Ocorre que, nos últimos anos, foram incontáveis os casos envolvendo parlamentares federais em crimes contra a Administração Pública e organização criminosa. Desde o escândalo do Mensalão, que corria paralelo a outro esquema de corrupção desmantelado durante a operação Lava Jato, temos assitido inúmeros membros do Poder Legislativo (e do Executivo) envolvidos nos mais diversos atos de malversação e apropriação de dinheiro público.

O crescente número de investigações envolvendo esses agentes levou o Supremo Tribunal Federal à conclusão de que a regra constitucional pura e simples a respeito da prisão em flagrante não era mais suficiente para lidar com a crise institucional que se instalava.

Baseando-se na necessidade de contornar a inviabilidade provocada pela lacônica norma constitucional, no final de 2015 o STF decretou a prisão preventiva do senador Delcídio do Amaral – seguindo, aliás, providencia que, pouco antes, havia adotado em relação a um deputado estadual, também imune. Na época, o tribunal fundamentou o afastamento da imunidade prisional do parlamentar considerando as circunstâncias específicas do caso concreto e invocou o postulado da derrotabilidade (ou superabilidade). Sobre o assunto, explica o constitucionalista Marcelo Novelino.

“Nos casos de conflito entre princípios e regras situados em planos distintos, o afastamento da regra legal somente deve ocorrer nos casos de inconstitucionalidade, de manifesta injustiça ou em situações excepcionalíssimas que, por escaparem da normalidade, não poderiam ter sido ordinariamente previstas pelo legislador. O afastamento da aplicação de regras válidas ante as circunstâncias específicas do caso concreto é conhecido como derrotabilidade (ou superabilidade). Em tais hipóteses, o intérprete confere ao princípio da justiça e aos princípios que justificam o afastamento da regra um peso maior do que ao princípio da segurança jurídica e àqueles subjacentes à regra. A ponderação, portanto, não é feita entre a regra e o princípio, mas entre princípios que fornecem razões favoráveis e contrárias à aplicação da regra naquele caso específico. Não há nisso, qualquer desobediência ao direito, pois a decisão é pautada por normas estabelecidas pelo próprio ordenamento jurídico” (Curso de Direito Constitucional. 11. ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2016).

Não é despropositado atribuir a origem disso, ao menos em parte, ao fato de que a Constituição Federal permite apenas e tão somente a prisão em flagrante por crime inafiançável, mas o texto constitucional não abrange, obviamente, normas procedimentais; só se faz referência à prisão em flagrante, que é disciplinada no Código de Processo Penal. Ocorre que, até 2011, o agente era preso em flagrante e, se não fosse relaxada (porque ilegal), essa prisão podia perdurar até o final do inquérito policial, quando então o órgão do Ministério Público, ao oferecer a denúncia, devia se manifestar pela conversão do flagrante em preventiva ou pela liberdade provisória. O problema é que, em 2011, a Lei 12.403 alterou esse procedimento. Desde então, no momento mesmo em que o juiz recebe o auto de prisão em flagrante – em até 24 horas após a prisão –, deve decidir se: 1) relaxa a prisão; 2) converte o flagrante em preventiva, caso as medias cautelares não sejam suficientes; 3) concede liberdade provisória. Isso gera um problema nesse caso em que a Constituição permite apenas a prisão em flagrante, porque, segundo a regra atual, essa prisão só ocorre em determinado momento. Se um parlamentar é preso em flagrante e o auto de prisão é encaminhado ao Parlamento, e for mantida a prisão, cria-se um problema para o STF: qual modalidade, se a prisão em flagrante não pode perdurar? É preciso, então, decidir se se decreta a preventiva, que, se não for decretada, dá lugar a medidas cautelares ou à liberdade provisória.

Isso provoca a seguinte indagação: se é possível decretar a prisão preventiva em decorrência do flagrante, por que não seria possível fazê-lo diretamente diante de um caso em que, embora sem a situação de flagrância, a liberdade do parlamentar expõe a risco a ordem pública, a ordem econômica, a instrução processual ou a aplicação da lei penal?

Mas, como não poderia deixar de ser, a controvérsia não se cingiu à prisão preventiva.

Em maio deste ano, a Procuradoria Geral da República requereu ao STF, no bojo de um inquérito policial, a decretação da prisão preventiva do senador Aécio Neves. O pedido de prisão foi negado, mas o ministro Edson Fachin, então relator, impôs ao senador medidas cautelares diversas da prisão, porque considerou presentes indícios da prática dos crimes de corrupção passiva e de obstrução de investigação de infração penal envolvendo organização criminosa. Entre as medidas impostas estava o afastamento do mandato parlamentar.

Mas, desmembrado o inquérito, o novo relator, ministro Marco Aurélio, revogou as medidas cautelares e restabeleceu o mandato do senador. Para o ministro, não é possível que o Judiciário estabeleça medidas que a Constituição não contempla: “É mais que hora de a Suprema Corte restabelecer o respeito à Constituição, preservando as garantias do mandato parlamentar. Sejam quais forem as denúncias contra o senador mineiro, não cabe ao STF, por seu plenário e, muito menos, por ordem monocrática, afastar um parlamentar do exercício do mandato. Trata-se de perigosíssima criação jurisprudencial, que afeta de forma significativa o equilíbrio e a independência dos Três Poderes. Mandato parlamentar é coisa séria e não se mexe, impunemente, em suas prerrogativas”.

Em razão de recurso interposto pela Procuradoria Geral da República, a Primeira Turma do STF restabeleceu o afastamento cautelar do senador. Para o ministro Barroso, “Seria uma incongruência entender que se aplica a prisão domiciliar aos coautores menos relevantes sem a aplicação de nenhum tipo de restrição à liberdade de ir e vir a quem, supostamente, teria sido o mandante. Há indícios, bastaste suficientes a meu ver, de autoria e materialidade”.

Nesse ínterim, três partidos políticos ajuizaram ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5526) pedindo que o tribunal conferisse interpretação conforme a Constituição aos artigos 312 e 319 do CPP, para que a aplicação das medidas cautelares impostas a parlamentares fosse submetida à deliberação da respectiva Casa Legislativa em vinte e quatro horas, seguindo a regra relativa à apreciação da prisão em flagrante (art. 53, § 2º, da CF).

A ação foi julgada parcialmente procedente em 11/10/2017, oportunidade em que o tribunal reconheceu, por maioria, a necessidade de confirmação da medida de afastamento do cargo e de medidas que de alguma forma limitem ou embaracem o exercício da função parlamentar.

Diante da complexidade e das controvérsias que cercam o tema relativo às prerrogativas constitucionais de parlamentares em face do cometimento de crimes por quem que se aproveita justamente das prerrogativas para criar uma espécie de indenidade, não foram poucas as divergências entre os ministros.

Os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Celso de Mello votaram pela improcedência da ação. Em seus votos, os ministros admitiam a possibilidade de decretação de qualquer medida cautelar sem submissão à apreciação do Legislativo, independentemente da restrição provocada no exercício do mandato parlamentar. Basicamente, o fundamento foi o de que o mandato é revestido de prerrogativas que garantem seu livre exercício na medida em que evitam perseguições políticas, mas que não podem servir de escudo para o cometimento de crimes.

Ao referir-se às disposições constitucionais, o ministro Barroso afirmou que as possibilidades de manifestação sobre a prisão em flagrante de crime inafiançável, de sustação do andamento de ação penal e deliberação sobre perda de mandato (art. 55, § 2º) são exceções impostas pela Constituição ao regular andamento de processos criminais contra parlamentares. Se são exceções, e as únicas impostas, não é possível ampliá-las por via judicial.

Nessa esteira, qualquer óbice à aplicação das regras penais e processuais penais além daqueles impostos expressamente na Constituição contraria o princípio republicano.

Mas não foi essa a tese vencedora.

O ministro Alexandre de Moraes foi contrário, a priori, à possibilidade de decretar medidas cautelares que de alguma forma impeçam o exercício do mandato parlamentar exatamente porque essas medidas não são contempladas na Constituição Federal. Mas apontou que, caso admitida a decretação, é necessária a manifestação da Casa Legislativa respectiva para os fins dispostos no art. 53, § 2º, da CF. Também impôs a necessidade de manifestação do Parlamento o ministro Dias Toffoli, para quem, no entanto, as cautelares só podem ser decretadas no caso de flagrante de crime inafiançável ou se houver “superlativa excepcionalidade”.

O ministro Ricardo Lewandowski também votou pela necessidade de manifestação do Poder Legislativo, mas desde que se trate de medida limitadora do exercício do mandato. Caso contrário, pode ser aplicada pelo Judiciário sem nenhuma espécie de confirmação.

Para o ministro Gilmar Mendes, que igualmente admitiu as medidas seguidas de manifestação do Parlamento, não se trata exatamente de ampliar ou restringir prerrogativas parlamentares, mas de conferir o devido sentido a tais normas, que não têm o propósito de atribuir salvaguarda a atos criminosos.

O ministro Marco Aurélio votou contrariamente à possibilidade de impor qualquer das medidas cautelares do art. 319 do CPP a parlamentares, seguindo assim a orientação que já havia exposto quando revogou o afastamento do mandato imposto ao senador Aécio Neves. Mas também afirmou que, caso se admitisse essa possibilidade, seria imprescindível o controle político pelo Legislativo.

Finalmente, a ministra Cármen Lúcia – que desempatou o julgamento – ponderou que, embora seja necessário o cumprimento de medidas penais determinadas contra parlamentares, o mandato não pertence à pessoa do parlamentar – esse, aliás, é o fundamento das prerrogativas constitucionais. Por isso, é plenamente possível a aplicação das medidas cautelares de que trata o art. 319 do CPP, mas, caso se trate de algo que impeça o pleno exercício do mandato, a deliberação do Poder Legislativo é imprescindível.

Posto isso, a controvérsia serviu a todos para que se perceba o óbvio: o estatuto do Congressista (dentre outros) deve ser repensado. A imunidade prisional, por exemplo, serve, cada vez mais, como escudo para a prática de crime por uma parcela do parlamento, ficando seu autor no exercício do mandato, legislando em causa própria (e contra os interesses da sociedade). Ao invés de se pensar numa emenda que fortaleça a cadeia de imunidades (discurso já adotado por alguns congressistas), a sociedade clama mudanças que a restrinjam, caminhando mesmo para sua abolição.

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Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Polêmica Paraíba