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O jogo, a guerra e a Copa - Por Estevam Dedalus

Foto: Reprodução

Jogos e brincadeiras são universais. Em sociedades antigas e contemporâneas, primitivas e complexas, encontramos algum tipo de atividade lúdica. Um fato pitoresco é que os animais também brincam, que não estamos falando de uma invenção humana.

O historiador holandês Johan Huizinga defendia a ideia ousada que os seres humanos não modificaram essencialmente a natureza do jogo e que ele seria anterior à cultura. Não precisamos ir muito longe na cadeia evolutiva. Um estudo liderado pelo cientista da Universidade de Harvard, Richard Wrangham, mostrou que chipanzés jovens fazem brincadeiras com “bonecos”. O mais surpreendente para mim é que essas brincadeiras obedecem à divisão sexual entre machos e fêmeas. É comum que as jovens chipanzés sejam mais afeitas a brincar com os “bonecos”.

Os sociólogos chamam de socialização antecipatória o processo no qual uma pessoa é preparada para representar um papel social no futuro. O que ocorre com crianças durante a socialização primária, como quando elas brincam que são médicas e trabalham num hospital, fingem que são professores e dão aula numa escola, que são policiais e perseguem bandidos, ou quando vestem as roupas dos pais numa espécie de ensaio para a vida adulta. É inusitado encontrar algo minimamente parecido entre os chimpanzés.

Johan Huizinga faz uma observação interessante sobre os cachorrinhos que, assim como os macacos, brincam. Os cães fazem uso de expedientes que a maioria de nós considerariam restritos aos jogos entre os seres humanos, como evoluções, gestos e rituais. Ele lembra que os cachorros se convidam para brincar, e que existiria alguma regra que parece limitar as mordidas fortes e a violência.

É muito fácil perceber quando os cachorros estão brincando ou brigando. Aqui em casa, Tina e Alaska brincam e brigam todos os dias. São duas buldogues francesas, com temperamentos bastante diferentes, duas irmãs, amigas inseparáveis. Tina é aventureira, pretinha, autônoma e curiosa. Adora explorar o quintal da casa e as plantas. Está sempre alerta, com seus instintos de caça aguçados, para o azar das lagartixas. Alaska é intimista, branquinha e serena. Serena… desde que não se sinta ameaçada ou com ciúmes. Caso contrário, ela se transforma e “vira o cão!” Fica irreconhecível. Alaska vive à procura de um carinho. Se um dia você vier na minha casa, com certeza vai receber uma lambida nos pés. É uma forma que ela encontrou de demonstrar afeto e pedir um cafuné.

Os jogos e as brincadeiras vão além dessa dimensão e dos aspectos pedagógicos da socialização. Há neles um traço agônico que é fundamental compreendermos. Huizinga via nas guerras primitivas uma ludicidade indispensável. É uma experiência social marcada pelo pensamento mágico, no qual elementos do sagrado como Deus, o destino e o acaso se misturam com a dimensão prática da vida. Nesse tipo de guerra, a vitória precisa ser traduzida por meio de algum sinal divino inconteste.

Huizinga pensava ainda que os torneios medievais deveriam ser vistos como um combate simulado. Eu acrescentaria nessa categoria os jogos esportivos em geral, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. O meu argumento é que numa Copa do Mundo os países estão em guerra. Uma guerra simulada, que em sua expressão lúdica e simbólica seguiria os princípios da civilidade ao reconhecer que todos os competidores são iguais em humanidade e direito, que devem ser tratados e julgados pelas mesmas regras, mas que não rompeu com o mundo mágico.

Os países guerreiam, então, por um objeto sagrado que representaria a glória, durante um tempo determinado, seguindo regras gerais, que, se conquistado, confirmaria a “escolha dos deuses”: a taça. Depois que a guerra acaba, sem mortes ou sérios derramamentos de sangue, a vida segue normalmente seu ritmo. Os vitoriosos comemoram, reforçam seus laços e identidade coletiva. Enquanto os perdedores se lamentam, choram as dores da derrota, e passam a sonhar com uma revanche em 4 anos.

Fonte: Estevam Dedalus
Créditos: Estevam Dedalus