Dilema

RESTRIÇÕES DE DIREITOS NA PANDEMIA: a Constituição e os limites impostos aos cidadãos

A luta mundial contra a pandemia em 2020 restringiu liberdades individuais dos cidadãos, em diversos países, em nome da saúde pública e da coletividade.

A luta mundial contra a pandemia em 2020 restringiu liberdades individuais dos cidadãos em diversos países, em nome da saúde pública e da coletividade. Embora regimes autoritários tenham aproveitado para impor penalidades e aumentar a repressão, nas democracias alguns limites também foram implementados com o objetivo de evitar a propagação do novo coronavírus.

O debate sobre esse aparente conflito perdura desde o início da pandemia, quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) defendeu a abertura da economia, com restrições mínimas, enquanto que prefeitos e governadores, em sua maioria, com o aval do Supremo Tribunal Federal (STF), optaram por impor limites ao comércio, eventos e à locomoção em nome de proteger a saúde pública.

No Estado da Paraíba, o assunto também ganhou repercussão, já que diante do aumento de casos pelo novo coronavírus, decretos limitaram eventos com aglomerações em todo o território estadual. Também há uma norma que prevê o uso obrigatório de máscaras em espaços públicos e um plano que prevê a retomada das atividades com base em bandeiras epidemiológicas.

Advogados entrevistados pela reportagem do Polêmica Paraíba afirmaram que a Constituição de 1988 prevê a restrição de direitos em casos excepcionais, a exemplo de uma pandemia, sobretudo quando a saúde pública está em discussão.

O jurista e conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Harrison Targino, lembrou que no sistema constitucional brasileiro não há um direito fundamental único, e que eles devem ser interpretados de forma conjunta.

“Se é certo que o inciso 14 do artigo 5º da Constituição garante a todos em tempo de paz a livre locomoção no território brasileiro, também é preciso perceber que o artigo 196 garante o direito à saúde coletiva, à saúde de todos, impondo ao estado o dever de políticas públicas que a garantam. No tempo como esse, de pandemia, são normais as restrições de locomoção, restrições em relação à liberdade individual, do todo, do coletivo, considerou.

Ainda conforme Harrison Targino, tais restrições, que tem como objetivo, evitar contaminações, são admitidos em sistemas constitucionais do mundo inteiro. “Basta ver em várias partes do mundo lockdown, restrição de espaços que foram impostas, sempre dentro do parâmetro de normalidade constitucional, dentro desse tempo de anormalidade”, ressaltou.

Para o professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e advogado Rinaldo Mouzalas, tais medidas são permitidas, mas quando impostas devem observar o princípio da ‘razoabilidade’.

“Sem dúvidas, em concretização ao direito coletivo à saúde, poder-se-ia restringir algumas liberdades individuais. Mas, as restrições devem se balizar pela razoabilidade e pela proporcionalidade. Se a restrição à liberdade individual concretiza o direito coletivo à saúde e, ao mesmo tempo, impõe uma limitação que é equilibrada (proporcional ao fim que se busca alcançar), ela se justifica”, disse.

Apesar de legais, as ações dos governantes podem se mostrar equivocadas quando não solucionam os problemas coletivos. Levando em consideração o princípio da razoabilidade, Rinaldo Mouzalas avalia que no início da pandemia, gestores erraram ao impor um lockdown irrestrito, isto é, para toda a população em vez de apenas para os grupos de riscos.

“Penso que algumas restrições atenderam sim a estes parâmetros, mas, muitas outras (numa análise atual), não, em especial no início da pandemia. Não se poderia impor lockdown se os leitos de UTI e de enfermaria não estavam lotados. Da mesma forma, não se poderia impedir a circulação de pessoas que estão dentro de grupos de baixíssima mortalidade. Mas isso, infelizmente, chegou a ocorrer. Hoje, vemos quão grandes foram estes erros”, considerou.

Se por um lado as restrições não implicam diretamente em desrespeito à Constituição, desvios de recursos públicos  destinados à pandemia, que ocorreram no Rio de Janeiro, por exemplo, podem ser vistos como um ato contra os Direitos Humanos.

“Contratações em nome de “saúde pública” cujos recursos não foram devidamente aplicados, não realização de tratamento precoce com imposição de prolongado isolamento social (via lockdown), são evidências de desrespeito a direitos humanos (cujos atos estão fundados na suposta afirmação da saúde)”, disse Mouzalas.

Ponto de vista médico

A discussão sobre as restrições da pandemia são permeadas, também, de recomendações médicas. São esses profissionais que estão na linha de frente contra a doença.

O médico ortopedista Jerry Boni, que contribui para a recuperação de pacientes que foram infectados pela Covid-19, salienta que “Há apenas duas maneiras de se derrotar um vírus: imunidade natural e vacinas”, que estão em fase final de testes e devem ser disponibilizadas em breve.

“A aceitação deste fato possui implicações importantes, pois significa que a fatia vulnerável da população pode se isolar durante os dias ativos do vírus, e então voltar à vida normal tão logo a “imunidade de rebanho” tenha sido alcançada por meio da infecção de uma fatia da população não-vulnerável”, ressaltou.

Na Paraíba, o secretário de estado da saúde, o médico Geraldo Medeiros, foi uma das vozes mais firmes, em defesa do isolamento social e do uso de máscaras, como meio de diminuir a propagação do vírus e amenizar o impacto da pandemia nos hospitais. Isso com base em estatísticas diárias, disponibilizadas pelas secretarias de saúde dos municípios.

Mesmo com tais recomendações, nem todos os cidadãos obedecem o isolamento social, provocando aglomerações e o não uso de máscaras. Em entrevista recente, Medeiros alertou sobre os efeitos dessa desobediência.

“Teremos reflexos negativos desta desobediência civil institucionalizada, infelizmente. A não utilização de máscaras e as aglomerações sem o cumprimento do distanciamento social revelam a inquietude e o desalento de uma sociedade que não está sabendo lidar com uma catástrofe sanitária”, alertou.

Toda a discussão, enfim, resume-se na premissa defendida pelo procurador Público de João Pessoa, advogado, e Mestre em Direitos Fundamentais, Thyago Braga.

“Nenhum direito ou liberdade fundamental é absoluto. Havendo choques entre direitos dessa espécie, deve-se ponderar qual deverá prevalecer no caso concreto. Nesse sentido, tendo surgido uma pandemia, causada por uma variante de vírus até então desconhecida por grande parte do mundo, medidas restritivas em prol da proteção da vida e da saúde da população eram necessárias e constitucionalmente aceitáveis”, disse.

A solução, segundo ele, será sempre plural, tendo como pano de fundo o diálogo e a transparência.

“Creio que a resolução do problema passa pela valorização da razoabilidade e da solidariedade para saber quais atividades devem restar suspensas momentaneamente, a depender da curva epidemiológica existente. Entretanto, o mais importante: as restrições somente serão bem aceitas, se forem previamente debatidas com representantes dos segmentos afetados, e não apenas impostas pelos gestores, e se houver a apresentação de um plano de custeio dos impactos econômicos, a exemplo de redução de tributos, concessão de subsídios e redução de juros bancários pelas instituições financeiras oficiais”, finalizou.

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Polêmica Paraíba