Rubens Nóbrega

Vendo por acaso uma anotação na folhinha do calendário, pôs-se a recordar, vinte anos depois, a primeira vez em que viu a sua amada. Como naquele dia, agora também deu vontade enorme de cantar ou acompanhar ‘Todo azul do mar’. Cantou:
– Foi assim, como ver o mar A primeira vez que meus olhos Se viram no seu olhar Não tive a intençãoDe me apaixonar Mera distração E já era o momento de se gostar.

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Depois, pensou nos primeiros dias da vida a dois. Tempos de incertezas, dificuldades, incompreensões, de apertos no coração e o bolso. Afinal, a única certeza era a de ter encontrado o amor definitivo, o que exigia deixar pra trás todo o acumulado até então e recomeçar do zero. Aí, imaginou-se fazendo segunda voz em ‘Caminhos de Sol’:
– O amor fez parteDe tudo que nos guiouNa inocência cegaNo risco das palavrasE até no risco da palavraAmor.
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Na sequência, logo deixou de solfejar mentalmente a música de Herman Torres e Salgado Maranhão e sem saber exatamente porque convergiu a memória para instantes e rompantes que quase botaram tudo a perder.
Nessa mudança, não deu outra. O pensamento concentrou-se de imediato no óbvio, fixando-se no clássico bolerão de Evaldo Gouveia e Adelino Moreira que desde sempre elegera o tema das reconciliações do casal. E começou a cantar, dessa vez em voz alta, como tantas vezes apelou, assim:
– Veja sóQue tolice nós doisBrigarmos tanto assimSe depoisVamos nós a sorrirTrocar de bem no fim…

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Parou um pouco e sorriu, porque remontou o quanto a estrofe seguinte de ‘Brigas’ lhe dava o argumento perfeito para convencer a musa a ficar de novo numa boa:
– Para que maltratarmos o amor O amor não se maltrata não Para que, se essa gente o que quer É ver nossa separação.

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Mas, mesmo convencendo e ‘ganhando’ de novo a mulher, alguma coisa ficava mal resolvida entre os dois. A razão: invariavelmente ele esperava ver-se retribuído no gesto de sempre tomar a iniciativa da desculpa, de suplicar o perdão.
Ele sempre esperava o mais previsível, que era a mulher abraçá-lo e sussurrar ao ouvido aquela canção do Roberto:
– Eu tenho tantopra lhe falarmas com palavrasnão sei dizercomo é grandeo meu amorpor você.

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Qual o quê? De previsível ela nada tinha e, pelo visto, jamais terá. Tanto que certa vez surpreendeu bem o companheiro ao valer-se de Lulu Santos para significar que o amor não poderia ser aquela coisa linear, sem oscilações nem altercações.
Querem saber o que ela disse, ou melhor, cantarolou? Olha só:
– Hoje o tempo voa amor Escorre pelas mãos Mesmo sem se sentir Não há tempo que volte, amor Vamos viver tudoQue há pra viver Vamos nos permitir…
Ainda hoje ele não entende direito porque ela reagiu daquela forma. Por que ‘Tempos modernos’? Alguma alusão à aparente incapacidade dele de superar a tensão sem remoer coisas passadas ou motivos mais imediatos de uma briga já superada?

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De uma coisa é certa: daquela vez, teve que se segurar para não chutar o pau da barraca ou o balde. Foi luta ficar, não ir embora.
Hoje, sabe muito bem que não fez nada daquilo porque teve receio dela, pra variar, não dar o braço a torcer. E, como pino foi feito pra gente bater, parece estar se vendo novamente saindo de cena, cantando bem baixinho feito vocalista do Kid Abelha ou do Paralamas interpretando ‘Nada por mim’, bem Herbert Vianna:
– Você me diz o que fazer E não procura entender Que eu faço só pra agradarMe diz até o que vestir Com quem andar, pra onde ir Mas não me pede pra voltar.

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Bobagem. Sabia, sempre soube, que o sentimento é maior que tudo, passa por cima de tudo. Até do orgulho besta de macho que resiste admitir a superioridade da fêmea, sobretudo na manha, no jeito e no dengo com que mantém o seu ‘amuado’ na dela, na linha.
Por essas e outras, achou graça nas velhas intenções de protesto, na raiva mais raivosa que se esvaiu ao primeiro sorriso da companheira, ao soprinho no cangote que arrepia do cocuruto à unha do mindinho do pé.
Por essas e outras, não teve mais dúvidas. Pra fechar a trilha sonora de suas recordações ou o fundo musical do presente e do futuro que deseja para os dois…
Só mesmo recorrendo aos versos do inigualável Tom Jobim, que fez a mais completa tradução do amor para uma vida inteira:
– Quero a vida sempre assim, com você perto de mimAté o apagar da velha chama…