Reconhecimento

Maestro nascido em Conceição do Piancó é tema de filme que será lançado em festival internacional

Confira a história do maestro que saiu de Conceição-PB, conquistou o Brasil e o mundo e caiu no esquecimento após ser cassado pelo AI-5 da ditadura militar.

Confira a história do maestro que saiu de Conceição-PB, conquistou o Brasil e o mundo e caiu no esquecimento após ser cassado pelo AI-5 da ditadura militar. Entrevista foi feita pelo jornalista Lúcio Vilar com o diretor do filme para o jornal A UNIÃO. O Filme joga luz em paraibano ‘apagado’ da história.

Aposentado compulsoriamente pelo AI-5 em 1968, maestro José Siqueira foi proibido de lecionar e reger na Escola de Música da UFRJ e no Instituto Villa-Lobos

LÚCIO VILAR – Especial para A União

Qual o papel do cinema de não-ficção? Em sendo correta a hipótese de que cabe ao documentário o papel de operar nas quatro linhas do campo e, por isso mesmo – sujeito ao acaso, elucidações, redescobertas e/ou ressignificações de personagens, culturas, eventos históricos etc. –, os diretores Rodrigo T. Marques e Eduardo Consonni são expressão de um projeto cinematográfico bem-sucedido em que assinam direção, roteiro, produção e montagem. Chama-se ‘Toada para José Siqueira’ o longa-metragem selecionado para o 13º In-Edit – Festival Internacional do Documentário Musical, com início nesta quarta-feira, 16, em formato on line, cujo objetivo é fomentar a produção e difusão de filmes documentários que tenham a música como elemento integrador.

Em cena aberta – durante duas horas e dez minutos e com narração do ator Fernando Teixeira – está o paraibano José Siqueira, maestro, compositor, musicólogo, professor e fundador da Orquestra Sinfônica Brasileira, autor de outras tantas iniciativas no Brasil e no exterior, com passagens pela antiga URSS, Europa e Estados Unidos. A peculiaridade, aqui, é o fato de a descoberta do ‘ilustre desconhecido’, em solo brasileiro, ter ocorrido no ambiente familiar de um dos diretores. A seguir, confira esse e outros detalhes da construção do filme, dos feitos históricos de Siqueira e do ‘apagamento’ de sua memória pós-ditadura militar, compartilhados por Rodrigo T. Marques em entrevista ao jornal A União.

– Esse filme nasceu literalmente no seio do ambiente familiar. Como foi isso?

Há vinte anos minha avó, Aury Siqueira, me deu um livro sobre seu irmão, José Siqueira, que era compositor e maestro. Eu não sabia nada sobre sua história e depois de lê-la, muitas coisas começaram a mudar sobre a forma como eu via minha família e minha própria vida. O ano era 2000 e enquanto eu ainda estava na universidade resolvi conhecer a Paraíba e ir até Conceição, cidade natal de minha avó e do maestro. Levei uma câmera Super VHS e um gravador de som. Meu contato em João Pessoa era a Vera Teixeira, uma prima que tinha vivido no Rio de Janeiro. Fiquei hospedado na casa dos pais dela, Seu Luís e Dona Letícia, até que um dia ela me disse que eu tinha que conhecer o irmão dela que era um ator e diretor de teatro muito conhecido na Paraíba. Fomos até um almoço em Cabo Branco onde conheci Fernando Teixeira, meu primo. Contei pra ele que estava lá, pois queria ir até Conceição para pesquisar mais sobre a vida do maestro José Siqueira. Fernando na hora me disse que havia nascido em Conceição e que me levaria até lá. Fomos eu, Fernando e Fabíola, companheira de Fernando, rumo ao sertão paraibano. Depois de 10 horas de viagem chegamos a Conceição e ficamos hospedados no Hotel JK. Fiquei 10 dias no sertão onde tive contato com o padre da cidade de Conceição, José de Sousa, que me contou como era o pastoril e outras festas. Perguntei a ele se havia algum mestre de banda na região e ele me disse para ir à Bonito de Santa Fé onde havia um mestre de banda chamado Capitão José Neves, que até hoje mantinha a banda de música que Siqueira havia fundado em 1921. Fui até Bonito de Santa Fé e encontrei o mestre José Neves que mantinha a banda ativa e, além disso, conhecia toda a história do maestro, tendo também livros de educação musical de Siqueira. José Neves resgatou duas músicas de Siqueira que tinham sido compostas para a banda de Bonito de Santa Fé. Gravei aquele momento e voltei para Conceição para mais alguns dias até retornar a João Pessoa. Na capital da Paraíba, realizei uma longa entrevista com o musicólogo Domingos de Azevedo Ribeiro e fiz um encontro com o músico Oliveira de Panelas antes de retornar a São Paulo. Ali nascia o embrião de uma pesquisa para a realização de um filme sobre a história do meu tio avô.

– Em que momento você se deu conta que havia um filme ‘pedindo passagem’ e se colocou na obrigação de fazê-lo?

Quando terminei de ler o livro da história de Siqueira não acreditei. Eu tinha o sonho de fazer cinema e o livro me inspirou a ir atrás da realização desse sonho. Via naquela história uma oportunidade de fazer um filme, mas, naquela época eu ainda não tinha nenhuma experiência e a dimensão da história de Siqueira demandava uma estrutura que estava ainda muito distante da minha realidade. O sonho era fazer cinema e poder levar essa história para a tela grande para que minha avó pudesse assistir no cinema a história do seu irmão. Infelizmente minha avó já não está mais entre nós; mas não desisti de levar adiante esse sonho. Em 2006, comecei a fazer documentários junto com meu sócio, Eduardo Consonni, e desde então o projeto de realização do filme sobre o Siqueira sempre esteve na mesa. Realizamos vários curtas-metragens até realizar a primeira longa, ‘Carregador 1118’. Começamos a rodar os festivais nacionais e internacionais e com o tempo fomos ganhando experiência para começar a tentar avançar com a ideia de levar a cabo o filme de Siqueira. Até que, por acaso, encontramos o músico Pedro Osmar num estúdio do amigo Marcos Alma aqui em São Paulo. Eu tinha conhecido um pouco da obra e da história do Pedro quando fiz aquela primeira viagem à Paraíba no ano 2000. Desse encontro com Pedro, que estava gravando um novo disco produzido por Guegué Medeiros, começamos a acompanhar as gravações e desse encontro nasceu nosso segundo longa documentário chamado “Pedro Osmar, prá liberdade que se conquista”, que lançamos em 2016. Essa história nos reaproximou da Paraíba e o projeto de Siqueira foi se tornando mais viável. Já tínhamos experiência e maturidade para realizar um filme à altura do maestro José Siqueira.

– Como foi inventariar todos os passos do paraibano ilustre que a Paraíba e o Brasil, infelizmente, desconhecem?

A história de Siqueira tinha uma envergadura um pouco maior em relação à pesquisa e à produção. Tínhamos o livro como bússola, mas era preciso ter uma equipe, mergulhar nos acervos, nas bibliotecas, nos arquivos e cinematecas aqui no Brasil e também na Rússia em busca de rastros dessa figura ainda desconhecida em nosso país. Além disso, era um filme que envolveria viagens à Paraíba, Rio de Janeiro, Pernambuco e para isso precisaríamos de recurso, caso contrário o filme não teria a profundidade e a grandeza de Siqueira. Finalmente conseguimos formatar o projeto com bastante maturidade para começar a enviar para os  canais para tentar realizá-lo via editais de fluxo contínuo da Ancine/FSA. O canal CineBrasilTV mostrou interesse no projeto e em seguida fomos selecionados para participar de um laboratório de projetos no DOCSP com mentoria da tutora Marta Andreu. Esse movimento fez com que o projeto se desenvolvesse ainda mais e logo depois fechamos com o CineBrasilTV e aprovamos o projeto do  filme no Prodav junto à Ancine. Vivíamos um momento delicado pós-golpe e não sabíamos se conseguiríamos ter acesso aos recursos mesmo tendo o projeto aprovado na lei. Em dezembro de 2018, os recursos chegaram e no início de 2019 iniciamos a pesquisa do filme com força total juntamente com uma equipe em João Pessoa liderada pela professora e pianista Josélia Vieira e outra no Rio de Janeiro encabeçada pela pesquisadora Eloá Chouzal. Conseguimos, dessa forma, realizar uma vasta e profunda pesquisa, com viagens para o Rio de Janeiro e sertão da Paraíba, onde  foram pesquisados todos os acervos públicos e privados sobre o maestro, o que trouxe para a produção um grande desafio na recuperação do seu acervo fotográfico, cadernos de viagem, rolos de áudios e rolos de filmes super 8mm, de suas viagens de pesquisa sobre a cultura popular nordestina, todos inéditos e com um enorme valor para a história da cultura brasileira. Muito deste acervo já estava em estado de deterioração avançado, principalmente os rolos de áudio e filmes super 8, e com o apoio do Hernani Heffner e sua equipe da Cinemateca do MAM, do Rio de Janeiro, conseguimos salvar uma parte desse material inédito. Em seguida demos início à produção do filme  que se estendeu até o fim de 2019 com filmagens no Rio de Janeiro, Paraíba (João Pessoa e sertão) e  Pernambuco (Recife). Um dos maiores desafios foi construir o personagem de Siqueira sem o recurso de depoimentos e  entrevistas, o que nos colocou num desafio de linguagem documental, e para isso recuperamos textos escritos por José Siqueira, encontrados durante a pesquisa, e criamos uma narração com o ator paraibano Fernando Teixeira que traz para o documentário um tom autobiográfico, revelando  uma surpreendente história de vida e um legado que transformou os rumos da educação musical e   da música clássica no Brasil. A pós-produção do filme foi realizada durante todo o ano de 2020 e início de 2021.

– O maestro ter sido atinguido pelo AI-5 determinou o fato de seu nome ter sucumbido ao esquecimento?

Quando iniciamos a pesquisa sobre Siqueira nos acervos, quase não haviam imagens de Siqueira, tanto imagens fixas quanto em movimento. Ficou claro que havia sido feito um apagamento dessa importante figura. Siqueira foi uma das mais importantes personalidades da música brasileira de todos os tempos, sendo além de maestro, um profícuo compositor com uma obra de mais de 500 composições, fundador de inúmeras orquestras, dentre elas a Orquestra Sinfônica Brasileira, a Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, a Orquestra Sinfônica Nacional da Rádio MEC (atual Orquestra Sinfônica Nacional) e a Orquestra de Câmara do Brasil. Além disso, se formou advogado para reconhecer o músico como classe profissional no Brasil, tendo fundado a União dos Músicos do Brasil e a Ordem dos Músicos do Brasil. Siqueira foi também professor da Escola de Música da UFRJ e do Instituto Villa Lobos. Portanto, Siqueira era uma figura muito conhecida que tinha seus ideais socialistas evidenciados na  luta pela defesa dos direitos dos músicos brasileiros, através da popularização da música clássica com os concertos para a juventude e de muitas outras ações que o colocaram na mira dos militares que o aposentaram compulsoriamente, no AI-5 em 1968, da cadeira de professor da Escola de Música da UFRJ e do Instituto Villa-Lobos. Além de o proibirem de reger e de ter sua obra executada. Tudo isso ocorreu no auge da carreira de Siqueira, que estava com 61 anos, em plena atividade e certamente essa perseguição colaborou para a apagamento da história e da obra de Siqueira da memória nacional. Mas uma história como essa não há como acabar no esquecimento e  o filme “Toada para José Siqueira” vem para quebrar essa tradição de apagamento herdada da ditadura militar.

– Filme ensejará homenagens e já se especula o nome do maestro José Siqueira para o Ano Cultural 2022 pelo Governo do Estado. O que acha dessa possibilidade?

A ideia de homenagear Siqueira no ano cultural de 2022 pelo Governo do Estado da Paraíba é excelente e com o lançamento do filme pode ser o momento certo para essa homenagem. Estamos preparando um projeto junto com a professora e pianista Josélia Vieira, de realização de uma Caravana Siqueira para o ano de 2022 com o intuito de levar cinema, música e educação por todo o estado através da vida e da obra de importante figura que segue desconhecida na Paraíba e no Brasil.

– Que expectativas você tem com o filme, uma vez lançado, e que projetos vislumbra no sentido da  potencialização desse resgate, especialmente na Paraíba?

A expectativa é grande para o lançamento do filme. Por conta da pandemia, inicialmente vamos fazer o circuito de festivais ainda no formato online durante o ano de 2021 e a ideia é fazer em 2022 o lançamento do filme nos cinemas, de forma presencial, e em seguida na televisão no canal CineBrasilTV. Nossa ideia é realizar o lançamento do TOADA PARA JOSÉ SIQUEIRA nos cinemas no primeiro semestre de 2022 na Paraíba (João Pessoa, Campina Grande e interior), Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo mas ainda estamos buscando recursos para podermos realizar essa distribuição do filme. Pretendemos estabelecer um contato junto ao Governo do Estado da Paraíba para fortalecer a distribuição do filme no estado estimulando a circulação da vida e da obra do maestro apresentados no filme nas escolas, universidades, bibliotecas, espaços culturais e demais locais em que a cultura e a educação estejam presentes.

A distribuição nas salas será pautada por uma campanha de impacto social e circuito de difusão social, para ampliação e formaçãode público. O lançamento nos cinemas, televisão e a circulação ampliada prentendem, inicialmente, contemplar os seguintes objetivos: Homenagear e fortalecer a memória histórica do maestro, bem como de seu legado na relação entre música, educação, cultura e desenvolvimento social. Articular, em torno do filme, uma rede de jovens músicos que integram projetos de desenvolvimento social por meio da música, usando o cinema para visibilizar essas iniciativas. A distribuição prevê que o filme circule para além das janelas tradicionais – cinema, televisão, plataformas de VOD, Drive In – em uma estratégia integrada com a campanha de impacto. Essa campanha será desenvolvida em parceria com organizações que já atuam na intersecção entre música, educação e desenvolvimento social. Junto ao lançamento comercial nos cinemas, será articulado um circuito de difusão social, gratuito, em diversos espaços com rodas de conversa e debates com artistas, músicos, lideranças juvenis, jornalistas, formadores de opinião e comunidades escolares e universitárias. Esse circuito será híbrido – composto por sessões presenciais e online, seguidas de bate-papo, rodas de conversa e debates – e desenhado oportunamente entre a distribuidora Taturana e as organizações parceiras da campanha.

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Polêmica Paraíba