Exemplo de vida

CANONIZAÇÃO: Santa de todos os credos, Irmã Dulce sincretiza a fé dos baianos

É a Bahia de Todos os Santos e Orixás, que ganha, amanhã, uma santa para chamar de sua: Santa Dulce dos Pobres, filha de São Salvador, patrimônio da humanidade.

Festejar o sagrado é algo que o baiano sabe fazer. No rincão brasileiro onde cultos e festejos se misturam e é sutil a  fronteira entre o profano e o divino, vibra um povo com as festas de largo, as lavagens e os cortejos de afoxé. É a Bahia de Todos os Santos e Orixás, que ganha, amanhã, uma santa para chamar de sua: Santa Dulce dos Pobres, filha de São Salvador, patrimônio da humanidade.

Batizada Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, a freira católica Irmã Dulce ficou conhecida como “Anjo Bom da  Bahia” e “Mãe dos Pobres” por suas ações de caridade na cidade de Salvador.

Beatificada em 2011, a baiana será canonizada em cerimônia conduzida pelo papa Francisco    na Basílica de São Pedro, no Vaticano. É a primeira mulher nascida no Brasil declarada santa pela Igreja Católica.

A missa, que terá início às 5h (horário de Brasília), será acompanhada pelos devotos em Salvador no largo de Roma.

Na Bahia, o grande ato em homenagem à canonização de Irmã Dulce ocorrerá no dia 20 de outubro, na Arena Fonte Nova. O evento gratuito terá uma programação festiva, com shows e apresentações teatrais, e uma celebração religiosa, mais uma vez regida pelo arcebispo de Salvador. O presidente Jair Bolsonaro não estará presente em nenhuma das cerimônias, mas o vice-presidente, general Hamilton Mourão, representará o Planalto na missa de canonização no Vaticano.

Assim como na cerimônia de beatificação da religiosa, ocorrida há 18 anos no Parque de Exposições, em Salvador, o público que estará presente na Fonte Nova não será composto exclusivamente por católicos. O culto à Santa Dulce dos Pobres transcende os credos e une aos seguidores do catolicismo, candomblecistas, judeus, espíritas e até mesmo  evangélicos.

A história de caridade e cuidado com os desassistidos sincretiza a fé baiana na figura de Irmã Dulce.

Uma vida devotada à caridade
O jornalista Valber Carvalho analisou cerca de 12 mil documentos e entrevistou mais de 500   pessoas nos últimos anos para produzir a obra “Irmã Dulce – A Biografia de uma Santa” (título provisório), que será lançada em dois volumes —o primeiro tomo deve sair em dezembro, e o segundo, no final de 2020.

Além da imensa alegria, que ele ressalta ser a característica mais marcante de Irmã Dulce (“nenhum ser humano  conseguiria ser tão alegre lidando com problemas dos outros por, pelo menos, 19 horas do dia”), o jornalista vê a caridade e o amor ao próximo como atributos que a freira colocava “acima de qualquer coisa”.

“As pessoas a procuravam porque sabiam que ela não diria ‘não’ para ninguém. Isso foi criando uma grande energia em volta dela. Com essa devoção durante décadas, ela conquistou um reconhecimento e um respeito de todas as  religiões”, diz Carvalho. “Era uma figura extraordinária. Eu diria que foi a maior alma que já nasceu aqui.”

Para ele, Irmã Dulce dialogava com todas as classes sociais, do presidente da República ao vendedor de carvão da  Cidade Baixa e, mais que fazer caridade, ensinou a praticá-la. “Ela incutia uma transformação no comportamento das pessoas, fazia essa roda andar”, diz.

Também jornalista e biógrafo de Irmã Dulce, Graciliano Rocha lançou recentemente  “Irmã Dulce, a Santa dos Pobres” pela editora Planeta, fruto de uma pesquisa de oito anos sobre a vida da “Mãe dos Pobres”.

O biógrafo destaca o excepcional trabalho social desempenhado pela freira em Salvador como o motivo que levou  pessoas de todas as religiões a respeitarem e a admirarem.

“O fato de a Irmã Dulce ter liderado esse hospital, que foi tão importante em uma cidade como Salvador, de condições sociais tão difíceis, fez com que as pessoas de todas as religiões, incluindo o candomblé, tivessem essa adoração  pela Irmã Dulce”, completa.

A lavagem do Bonfim
A admiração do povo de santo ao “Anjo Bom da Bahia” fica evidente na lavagem do Bonfim, realizada anualmente no mês de janeiro, quando uma procissão parte da Igreja de Nossa Senhora de Conceição da Praia, na Cidade Baixa, e  vai até a Igreja do Bonfim.

Nesta tradicional manifestação religiosa popular baiana, quando o cortejo passava em frente ao Convento Santo  Antônio, onde Irmã Dulce viveu até seus últimos dias, ela era efusivamente saudada.

“As mães de santo que passavam ali ‘batiam cabeça’ para ela [um cumprimento no candomblé], reverenciando-a. Até hoje, quando passam aqui em frente, elas fazem isso. Jogam alfazema na estátua dela, se ajoelham, colocam  alguidar com flores brancas. Há quem chegue a incorporar. É obrigação passar por aqui”, conta Gouveia.

Irmã Dulce ficava na janela, vendo o cortejo passar e adorava quando os Filhos de Gandhi despontavam com seus  clarins. “Ela achava lindo quando eles passavam aqui. Eles calavam os atabaques e os agogôs e deixavam só os clarins tocando, em homenagem a ela”, relata o museólogo, lembrando que na lavagem de 1992, dois meses antes da morte de Irmã Dulce, eles passaram em silêncio, em respeito à freira.

A relação com os evangélicos
Trabalhando no complexo onde se localizam o hospital, a igreja, o memorial, a capela, o convento e a sede da OSID, Gouveia lida diariamente com devotos da mais nova santa brasileira, observando e absorvendo as inúmeras demonstrações de afeto a ela. Mas ele conta que há muitos casos de intolerância de evangélicos neopentecostais em frente ao  local.

“Tem gente que fica aqui na porta afrontando, dizendo que ‘santo é Deus’, essas coisas. Um fundamentalismo besta. E Irmã Dulce sempre transcendeu a tudo isso”, conta. Ele ressalta, porém, que a relação de Irmã Dulce com os  evangélicos sempre foi boa.

“Teve uma vez que veio aqui um grupo de 40 pastores da Assembleia de Deus. Vieram para um encontro nacional em Salvador e acabaram visitando o memorial dela. E aí surgiu aquela pergunta que não quer calar: ‘Por que ela?’. E eles responderam: ‘Porque ela é diferente’. É como se ela transcendesse essa questão da religião também”, conta o  assessor de memória e cultura das Obras Sociais Irmã Dulce.

O jornalista Valber Carvalho afirma que o respeito à Irmã Dulce era grande, também, entre os batistas. “Muitos, hoje, não curtem essa história de santificação, mas ela sempre teve muito apreço pelos batistas, teve muitos colaboradores e parceiros em ações de caridade. Os batistas respeitavam muito a figura dela, tinham uma admiração e uma  interação muito boa com ela”, afirma.

O governo da Bahia decretou o 13 de outubro, data de sua canonização, como o Dia da Santa Irmã Dulce dos Pobres. Para a Igreja Católica, a data litúrgica de celebração é o 13 de agosto, que marca o dia em que ela se tornou freira.  Dois dias a mais de festa no calendário baiano.

Fonte: Uol
Créditos: Uol