indícios favoráveis

'Tudo indica que vou viver para ver a renda básica implementada', diz Eduardo Suplicy

Economista fez da renda mínima universal uma missão política há 30 anos, vê sua proposta, tida como utópica, ganhar o debate global

Ao longo dos quase 30 anos em que o economista Eduardo Suplicy, 78, vem defendendo a proposta de uma renda básica para os brasileiros, nunca houve tantos indícios favoráveis como agora.

“Mesmo antes da pandemia, o interesse pelo tema já estava por toda parte”, comemora o ex-professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) que ingressou na carreira política em 1978 e tomou parte na fundação do Partido dos Trabalhadores em 1980, pelo qual hoje é vereador em São Paulo.

A simpatia pela ideia de que todos tenham direito a recursos que garantam sua sobrevivência com dignidade tomou força na esteira do aumento da desigualdade social em boa parte do planeta. Agora, o debate ganha ares de urgência diante das medidas de isolamento social para a contenção da pandemia da Covid-19 e consequente crise econômica.

Diversos governos têm implementado medidas emergenciais de distribuição direta de recursos a seus cidadãos. No Brasil, o governo aprovou benefício emergencial de R$ 600 a trabalhadores informais durante três meses prorrogáveis por mais três.

Incansável pregador das vantagens da renda básica universal, Suplicy já foi chamado de teimoso e sonhador, mas agora encontra coro em economistas das mais variadas tendências.

Ele é autor de quatro projetos de lei relacionados ao tema. Em 2004, o então senador viu aprovado seu projeto de renda básica de cidadania, com a ajuda do voto do então deputado federal Jair Bolsonaro. A lei, no entanto, não foi implementada —”ainda”, diz Suplicy, que é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo.

Entre lives “com interessados na renda básica universal de várias partes do país e do mundo”, sessões virtuais da Câmara e do partido, ele conversou com a Folha de seu isolamento social, na casa da companheira, Mônica Dallari, mandou livro com dedicatória por Uber e entoou, ao telefone, a canção que é marca desta sua missão política: “Blowing in the Wind”, de Bob Dylan.

Como avalia o projeto de renda emergencial sancionado pelo governo para a crise do coronavírus?

Considero um passo muito importante que o Congresso Nacional tenha, nas duas casas e por unanimidade, aprovado o benefício de uma renda básica emergencial para enfrentar a epidemia do coronavírus. Mas já havia um movimento muito forte nos mais diversos países de interesse, debate e experiências sobre a renda básica incondicional, universal.

Quais são essas experiências?

A mais bem sucedida é a do Alasca, nos EUA. Nos anos 1960, o prefeito da vila de pescadores Bristol Bay percebeu que saía de lá riqueza por meio da pesca, mas que as pessoas eram pobres. Ele resolveu criar um imposto sobre a pesca, que demorou cinco anos para ser aprovado diantes da resistência da comunidade a um novo tributo. Deu tão certo que ele depois virou governador do estado do Alasca e criou um fundo composto por parte dos royalties da exploração de petróleo. O fundo evoluiu de US$ 1 bilhão para US$ 65 bilhões. E o Alasca, que em 1980 era um dos estados mais desiguais dos EUA, hoje tem o segundo melhor coeficiente de Gini [índice que mede a desigualdade, sendo 0 a igualdade plena e 1 o extremo da concentração de renda] do país: 0,40. Propor o fim desse sistema se tornou um suicídio político no Alasca, que hoje distribui cerca de US$ 2.000 por ano para todos, independentemente de idade, sexo, cor, religião ou origem.

Há outras experiências do tipo?

Macau, ex-colônia de Portugal na China, também resolveu, em 2006, separar receitas para criar um esquema de participação de todos na sua riqueza. Há também experiências na Finlândia e em cidades da Holanda, França, Espanha e Califórnia. Além disso, há uma experiência importante na Namíbia e no Quênia, esta última financiada por empresas do vale do Silício a partir de proposta de pesquisadores da Universidade Harvard (EUA).

E no Brasil?

Maricá, na costa do Rio de Janeiro, criou um programa a partir de um banco social e uma moeda solidária, a mumbuca, aceita pelo comércio local. Começaram pagando o equivalente a R$ 20 por mês em 2016 para a população mais carente e, em 2019, todas as pessoas com renda familiar de até três salários mínimos, que somam 42 mil dos 162 mil habitantes, passaram a receber 130 mumbucas por mês, portanto, mais que os R$ 83 reais do Bolsa Família. Até 2024 Maricá vai pagar a todos os seus habitantes uma renda básica universal.

São experiências em comunidades menos populosas e complexas que a de um país como o Brasil…

O princípio é sempre o mesmo. E é cada vez maior o número de sugestões de que se institua a renda básica universal em países grandes. Nos EUA, o pré-candidato democrata Andrew Yang teve essa como principal proposta. No começo do ano passado, 27 economistas laureados com o Nobel e quatro ex-presidentes do Federal Reserve propuseram ao governo dos EUA taxar o carbono para a criação de programa similar. Na Europa, o filósofo e economista belga Phillipe Van Parijs sugere a criação de uma renda básica para toda a União Européia. O candidato de oposição nas eleições da Índia, assessorado pelo economista francês Thomas Piketty, propôs a renda básica universal, ainda que tenha perdido. Na África do Sul há um debate bastante grande sobre a proposta de se instituir a renda básica.

Por que a renda básica universal ganhou relevo agora?

Há um movimento crescente de reconhecimento da renda básica universal como instrumento eficaz para assegurar o direito à sobrevivência para o maior número de pessoas possíveis, promovendo uma sociedade mais justa e igualitária. Algumas das pessoas que têm falado disso são o ex-presidente dos EUA Barack Obama, o bispo sul-africano e Nobel da Paz, Desmond Tutu, o presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, e dezenas de economistas laureados como o Nobel.

Esse interesse se deve a princípios de solidariedade ou à constatação de que o sistema econômico atual promove desigualdades tamanhas que necessita deste tipo de programa para funcionar?

O diagnóstico de que as desigualdades cada vez maiores precisam ser resolvidas por meio de um desenho de um sistema tributário que promova maior igualdade abrange economistas no mais largo espectro. Desde Karl Marx —que sintetiza a ideia na frase “de cada um, de acordo com a sua capacidade, a cada um, de acordo com suas necessidades”— até o maior defensor do capitalismo, Milton Friedman, para quem o capitalismo é o sistema mais compatível com a liberdade do ser humano, mas não é capaz de resolver o problema da pobreza.

Não falta mobilização em torno da proposta?

Estou muito otimista porque foram entidades e movimentos sociais que propuseram ao Congresso Nacional criar a renda básica. Vinte e seis governadores, em carta neste momento de grave crise, solicitaram ao governo federal avaliasse a aplicação da lei 10.835, que institui a renda mínima de cidadania. Outras 157 organizações, desde o MST até entidades ligadas aos moradores de rua e ao direito de defesa, assinaram um manifesto expressando a vontade de que o Brasil venha a constituir uma renda básica universal. Ou seja, está muito longe de ser apenas eu. O movimento agora é popular e está ganhando respaldo em toda parte.

O que o despertou para essa questão?

Como economista, sempre me preocupei em descobrir meios para nos tornarmos uma sociedade mais justa. Apresentei a proposta de lei de um imposto de renda negativo para os brasileiros que ganhavam até 2 salários mínimos em 1991 no Senado. Foi aprovada por consenso.

De que maneira essa ideia deu origem ao Bolsa Família?

Os economistas simpáticos ao PT nos reunimos e propusemos uma renda mínima para as família carentes desde que as suas crianças estivessem frequentando a escola. Isso porque um dos maiores problemas do ciclo vicioso da pobreza é que crianças de famílias que não têm o que comer em casa começavam a trabalhar cedo e, na idade adulta, não teriam conhecimento suficiente para obter bons empregos.

Como isso foi implementado?

Em 1994, quando esteve no Brasil o filósofo e economista belga Philippe Van Parijs, fundador da rede mundial de renda básica [Basic Income Earth Network (BIEN)], eu o convidei a participar de uma audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso e seu ministro da educação, Paulo Renato de Souza. Eles conversaram muito e, em 2001, FHC passou uma medida provisória pela qual a União financiaria em 100% programas municipais de renda básica associada à educação. A medida se tornou lei e foi batizada de Bolsa-Escola. Depois foi criado o Bolsa-Alimentação para as famílias que vacinassem suas crianças. Com a eleição do presidente Lula, em março de 2006, foi lançado o Cartão-Alimentação. E, em outubro, unificaram esses benefícios no que viria a ser o Bolsa Família que, em 2006 tinha 3,6 milhões de famílias beneficiárias e hoje tem 14,2 milhões.

Em 2001, o sr. apresentou um projeto de renda mínima incondicional, aprovado nas duas casas. Por que ele ainda não foi implementado?

O projeto foi aprovado no Senado e na Câmara, onde contou com o voto favorável do então deputado federal Jair Bolsonaro. Sua implementação é por etapas. Portanto o programa Bolsa Família pode ser visto como um passo em direção à renda básica para a cidadania. E a preocupação com a segurança estará muito melhor atendida com a possibilidade de as pessoas sobreviverem com dignidade do que com a flexibilização da posse de armas, como fez o atual presidente.

O que impede a implementação da renda básica universal?

Historicamente, setores econômicos mais fortes têm influência maior nas autoridades econômicas do ponto de vista de recursos e incentivos fiscais. Uma renda básica modesta, de R$ 100 por pessoa por mês, daria R$ 248 bilhões por ano. E, desde 2013, os incentivos fiscais dados pelo governo federal a empresas ultrapassam os R$ 300 bilhões ao ano. Enquanto isso, o orçamento do Bolsa Família é de cerca de R$ 30 bilhões anuais. Ou seja, ao invés de transferirmos recursos para os que ganham mais, porque não pagarmos para todos?

O sr. vê chances de isso ocorrer neste governo?

É preciso que as pessoas responsáveis pela economia, Paulo Guedes e outros, conheçam que é possível caminhar com racionalidade em direção à renda basica de cidadania. Pessoas como o Onyx Lorenzoni, que é o ministro a Cidadania, saibam que é possível chegarmos a uma forma de financiamento de bom senso pela qual todos os brasilerios venham a paticipar da riqueza comum de nossa nação, que foi acumulada ao longo dos séculos, desde os tempos do trabalho escravo. Na reunião do PT, os governadores falavam das dificuldades imensas que estão acontecendo e da diminuição drástica na arrecadação de ISS e ICMS, o que vai gerar dificuldades em se prover o básico. Nesses momentos de extrema dificuldade é que temos a oportunidade de refletir e melhorar o sistema atual para vivermos numa sociedade mais livre e numa economia mais sã.

De onde viria o dinheiro para uma renda básica universal no Brasil?

Em 1999 eu propus um Fundo Brasil de Cidadania composto por parcelas dos aluguéis de imóveis da União, royalties da exploração de recursos naturais, de programas de desestatização, entre outros. Seria um superfundo, aprovado por consenso no Senado e nas primeiras comissões da Câmara, mas que acabou rejeitado a partir de um parecer negativo do governo da presidenta Dilma Rousseff.

Como o sr. avalia essa rejeição por governo de seu partido?

Não foi fácil, ainda mais porque o PT sempre teve em seus programas de governo a proposta de transição do Bolsa Família para a renda básica de cidadania. Foi uma desatenção muito séria. Eu considero que isso negou o que todos os programas do Partido dos Trabalhadores explicitaram ao longo da nossa história. Mas eu não desisto! [risos]

Quais são as vantagens da renda básica universal?

Elimina-se toda a burocracia de saber quanto cada um ganha e qual é seu patrimônio acumulado. Elimina-se o estigma do indivíduo que precisa de auxílio financeiro. Estimula-se o progresso porque, ao contrário do que se imagina, esses recursos não promovem a ociosidade ou a vagabundagem. Todos nós gostamos de nos sentirmos úteis. A principal vantagem é a de elevar a liberdade e a dignidade da vida humana.

Sua persistência neste projeto já lhe deu ares quixotescos. Isso o incomoda?

Eu tenho muita admiração por Dom Quixote —tenho até uma estatueta dele em casa. Eu não me importo porque é uma batalha que vale muito a pena. Cada vez mais as pessoas me procuram para dizer: puxa, você estava no caminho certo. E me parece que começa agora uma conspiração a favor dessa ideia. Tudo indica que vou viver para ver a renda básica implementada.

Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Folha de São Paulo