Estouro social

“PELA RAZÃO OU À FORÇA”: entenda o que deve mudar e como a nova Constituição Chilena simboliza avanços na América Latina

No último domingo (25), o Chile aprovou um plebiscito histórico para realização de uma nova Assembleia Constituinte. A Constituição chilena em vigência remete a década de 80 e é tida como herança do regime militar do ditador Augusto Pinochet.

O povo chileno decidiu pela razão! Não podia, ou devia, ser diferente. O lema “Pela razão ou à força” ficou marcado principalmente por ser utilizado por governos de direita, como o atual presidente Sebastian Piñera. Mas a razão voltou a emergir no lugar da força. A força covarde dos militares que ceifou vidas e retirou direitos. O povo chileno decidiu eliminar os resquícios da Ditadura ainda presentes na Constituição atual.

No último domingo (25), o Chile aprovou um plebiscito histórico para realização de uma nova Assembleia Constituinte. A Constituição chilena em vigência remete a década de 80 e é tida como herança do regime militar do ditador Augusto Pinochet.

Ana Lazcano Lemos é auditora fiscal e mora em Santa Maria, um povoado a pouco mais de 90 km da capital Santiago. Ela é militante de um partido político de centro-esquerda e afirma que a voz do povo chileno levou décadas para ser ouvida.

“A Constituição atual não representa a identidade e os sentimentos de todo o povo chileno, ela já foi criada a portas fechadas por ordem do General Pinochet, com base no espírito capitalista. Porém, não foi fácil gerar essa mudança, se passaram mais de 30 anos para que o Congresso aprovasse a moção para realizar um plebiscito de consulta pública”, afirmou Ana em entrevista ao Polêmica Paraíba.

As críticas ao texto da atual Constituição se baseiam principalmente por ela dar um papel residual ao Estado na prestação de serviços básicos, um dos motivos que levaram aos protestos iniciados em outubro de 2019 e se estenderam até março deste ano, no movimento que ficou conhecido como estallido social (estouro social, em português).

“Estado subsidiário” é o papel do governo atualmente. Esse Estado mínimo não oferece diretamente benefícios relacionados a saúde, educação ou previdência social, sendo o setor privado o responsável. Os chilenos clamam agora que o Estado tenha maior participação e envolvimento no fornecimento de serviços básicos.

Durante a ditadura de Pinochet, as privatizações foram intensificadas, o famoso “entrega tudo”. Na Constituição, esses serviços básicos, como eletricidade e água potável foram privatizados. Assim como áreas da educação e saúde.

Professora, Maribel Cortez reside também em Santa Maria. Suas palavras sobre a decisão por uma nova Constituinte ilustram a indignação dos manifestantes chilenos.

“Pela vergonha de ser atualmente o único país da América Latina que ainda mantém uma constituição instituída durante a ditadura, onde os privilégios são sempre para os ricos. É urgente garantir saúde não privada, ao alcance de todos os cidadãos, educação gratuita e de qualidade, um sistema previdenciário melhor, para que acabe o vergonhoso roubo do nosso dinheiro, dando parcas pensões para sobreviver depois de passar a vida inteira trabalhando”, relatou Maribel.

No domingo passado, 78% dos eleitores, como Ana e Maribel, votaram pela mudança da Carta atual e apenas 22% rejeitaram a proposta.

Protestos em Santa Maria – Chile

Vale ressaltar que a atual Constituição já foi modificada. Até 1989, ela estabelecia um pluralismo político limitado, supondo que certas ideologias políticas, como o marxismo, eram proibidas. Esse trecho foi revogado. Já em 2005, no governo do socialista Ricardo Lagos, uma reforma constitucional significativa acabou com os senadores nomeados, aqueles eleitos por instituições como as Forças Armadas ou o Supremo Tribunal.

Ex-vereador da Região Aconcágua, na divisa do Chile com a Argentina, Ricardo Covarrubias aponta que o retorno da democracia em 1990 ainda não havia atendido as necessidades da população.

“O que aconteceu no Chile com o Plebiscito de 25 de outubro só veio ratificar as reivindicações do povo há mais de 40 anos e que com o retorno à democracia em 1990 não encontrou a resposta adequada para mudar o que se instalou pela ditadura de Pinochet, ao contrário, foi negociada a coabitação dos senadores designados naquela época, para manter um modelo neoliberal desumano e sobretudo com uma sociedade endividada com os bancos em decorrência de suas dívidas geradas pelos estudos nas universidades, devedores no sistema de saúde, devedores no sistema habitacional e devedores no sistema financeiro”, analisou Covarrubias em entrevista ao Polêmica.

Estallido Social

O estopim para o início dos protestos que ficaram marcados na história como Estallido Social foi algo que se assemelha a realidade dos brasileiros: o aumento no preço das passagens.

Ana L. Lemos relatou que “em contrapartida, à medida que se avançava estruturalmente a consolidação [da democracia], gerava-se um declínio da participação social, fruto da inserção de uma economia de mercado sustentada pelo consumismo e pelo individualismo”.

Mas após décadas em estado de inércia, o levante foi incisivo.

“Em outubro de 2019, jovens estudantes do ensino médio decidiram não pagar a passagem do metrô, já que, conforme indicado pelo Poder Executivo, a passagem havia subido. Os jovens pularam os trilhos do metrô e foram seguidos por todos os cidadãos ali presentes. Este evento foi o início de uma série de revoltas cidadãs que cada vez mais se apoderaram, bem como a repressão junto à força pública. Desta forma, foi gerada uma resposta espontânea de todos os cidadãos em todo o país e todas as famílias foram às ruas para protestar, apesar do toque de recolher e ameaças do poder dominante”, contou Ana.

Ana relatou que participou dos movimentos de protesto em apoio aos filhos e ao movimento dos trabalhadores públicos.

Por outro lado, a repressão do governo, citada por ela, e o radicalismo de alguns manifestantes, fez o Chile registrar 36 mortes e mais de 11 mil feridos durante os protestos: “A maioria dos movimentos sociais traz consigo violência e abusos, mas é o único meio em que a história provou fazer sentir a voz do povo. É terrível e lamentável constatar que este tipo de situação expõe a integridade das pessoas, mas é o meio que tem permitido o acesso a mecanismos que dão soluções eficazes aos problemas que não permitem que uma sociedade mais justa e solidária avance”, afirmou.

A partir daí, a onda de protestos pressionou o Congresso a aprovar o plebiscito para que o povo decidisse se queria uma nova Constituinte, como ela analisa:

“Foi assim que o projeto foi apresentado no Congresso, que foi aprovado rapidamente para acalmar o público. De qualquer forma, acho interessante mencionar que, no segundo governo de Michelle Bachelet, a presidente deu os primeiros passos para trabalhar em uma nova Constituição ao apresentar o projeto no Congresso”.

A Nova Constituinte

Em abril de 2021 será realizada a Assembleia Constituinte, em um novo pleito, com igualdade de gênero (50% mulheres e 50% homens). Haverá uma cota de assentos reservados para os povos indígenas. Nesse caso, o Congresso chileno ainda não definiu quantos e como serão eleitos.

Na votação do último domingo, os eleitores decidiram ainda que a Constituinte não será mista, ou seja, com metade dos assentos destinados a parlamentares em exercício, mas sim inteiramente formada por novos membros eleitos e não há necessidade de filiação partidária.

“Os mecanismos existentes não são capazes de fornecer soluções concretas para essas necessidades. Desta forma, as pessoas tomam consciência de que a solução básica é conseguir a formulação de uma nova Constituição, mas com a participação real de todos os setores da cidadania. Este sentimento ganhou força a cada protesto cidadão”, analisou Ana L. Lemos.

Normas aprovadas por dois terços dos futuros constituintes serão incorporadas à nova Carta Chilena.

América Latina volta a respirar ares democráticos

Alberto Fernández na Argentina. Luis Arce na Bolívia. Resistência de Maduro. A política na América Latina retoma os ares democráticos, após ataques e golpes políticos que atingiram e fragilizaram a esquerda e a própria democracia. O povo, principal prejudicado, sente agora as consequências e tenta retomar o caminho progressista.

Maribel Cortez criticou a postura dos governos de direita no Continente e exalou esperança:

“A mudança para a direita nos últimos anos é assustadora! A América Latina tem estado um tanto adormecida, onde a direita e a extrema direita, ao semear o terror em diferentes países, vêm ganhando terreno, principalmente no Chile, Argentina e Brasil. Os governos de Piñera e Bolsonaro são particularmente duros, assim como foi o de Macri. A resposta do povo chileno às injustiças, a partir de outubro de 2019, foi admirável e espero que se reflita nas próximas eleições e que possa ser replicada nos demais países da região”.

Ricardo Covarrubias analisou que o Chile tem nas mãos a oportunidade para mudar o futuro dos países latinos:

“Devemos mencionar que o Chile teve que testemunhar um cenário local e regional de diferentes nuances, porque enquanto na Região [América Latina] vemos uma Venezuela, uma Argentina e agora uma Bolívia apoiada em seus processos por seu povo, embora sejam objetos permanentes de ataques de países alinhados com os Estados Unidos, o povo do Chile tem a grande oportunidade de entrar para a história e, através da própria democratização de seu Estado, pode se tornar um dos eixos para resgatar os países latino-americanos liderados por grupos econômicos, direitistas, golpistas, que governam no momento. Não há dúvida de que nossa região acabará por levar à unidade latino-americana onde os povos irmãos construirão uma sociedade justa e solidária e, acima de tudo, humanitária”.

Covarrubias acrescentou que as próximas eleições no país devem apontar qual será o espectro do sucessor de Piñera:

“O que posso garantir é que o povo chileno mudou e não é o mesmo de antes do estallido social, porque o cenário político geracional mudou, então tudo estará sujeito ao que serão as próximas eleições municipais, de governadores e convenção constitucional, a partir daí teremos uma visão mais clara do futuro presidencial. Em todo caso, seria um grande sonho ocupar grande parte do que foi o Foro de São Paulo”, pontuou, se referindo a aliança dos partidos de esquerda da América Latina nos anos 90.

Ana L. Lemos destacou que a realidade econômica na América Latina está sendo assolada pelos governos de direita:

“Depois de observar as diferentes realidades dos povos latino-americanos, que têm um fator comum, que é o poder econômico prevalecente através da administração da classe política de extrema direita, é evidente que há um afogamento do povo, o que não os permite avançar para o bem-estar pessoal e familiar, apesar das extenuantes horas de trabalho, visto que a remuneração não é digna, nem suficiente”.

Como a esperança que tem Maribel e Ricardo, Ana frisou que esse é o momento da união dos povos latino-americanos: “É em tempos de crise onde existe a oportunidade de realizar transformações reais que permitam o desenvolvimento do bem comum, nesse sentido a América Latina vive uma crise profunda, que pode se transformar em uma poderosa força de mudança e movimento dos povos”.

Impossível não remeter a Neruda. No “país dos poetas”, o vencedor do Nobel de Literatura e político chileno, que certamente apoiaria a nova Constituinte, já dizia: “ao sul da minha poesia está a solidão; ao norte, o povo”.

“Nunca entendi a luta senão para que esta termine. Nunca entendi o rigor senão para que o rigor não exista. Luto por essa bondade ubíqua, extensa, inesgotável. Todos nos entenderemos, progrediremos juntos, e essa esperança é inesgotável”, diz trecho de ‘Confesso Que Vivi’.

Que os versos de Neruda inspirem o povo na América Latina!

Fonte: Samuel de Brito
Créditos: Samuel de Brito/Polêmica Paraíba