análise

Crise entre Bolsonaro e Moro continua apesar da trégua, diz jornalista

À primeira vista grande jogada para agregar a agenda da Lava Jato oficialmente à nova gestão, a chegada do então juiz símbolo da operação embutia um problema

A crise que quase tirou Sergio Moro do governo de Jair Bolsonaro está longe de acabar. Os motivos: a desconfiança atávica que o presidente tem das intenções de seu ministro da Justiça e Segurança Pública e a necessidade de controlar a Polícia Federal.

O primeiro item é conhecido desde que Moro aceitou o convite do recém-eleito Bolsonaro para integrar o governo, em 2018. À primeira vista grande jogada para agregar a agenda da Lava Jato oficialmente à nova gestão, a chegada do então juiz símbolo da operação embutia um problema.

Moro é muito popular —e segue o sendo, mesmo com todos os arranhões públicos e pancadas institucionais que a Lava Jato sofreu em 2019.

Pior para Bolsonaro, ele encarna de forma mais crível a figura do cruzado anticorrupção e conversa com o eleitorado que elegeu o capitão reformado. Assim, ao longo do ano passado os dois políticos criaram uma dinâmica ciclotímica de relacionamento.

Para cada elogio público que recebia do chefe, Moro era submetido a alguma humilhação programática.

Ao mesmo tempo, a popularidade do ministro o torna quase indemissível, como a crise acerca do desmembramento do ministério de Moro provou na semana passada.

É um casamento de conveniência, no qual o sócio majoritário tem certeza de que será traído pelo minoritário, daí o regime de contenção de tempos em tempos.

Há também ciúme político. Bolsonaro, segundo interlocutores, ficou irritado com a defesa tíbia que o ministro fez de sua figura na entrevista que deu ao programa Roda Viva, na segunda-feira (20).

O fígado foi importante para o presidente articular o anúncio informal, “lavado” como pedido de secretários de Segurança pegos de calças curtas numa reunião ordinária em Brasília, da hipótese de desmembrar a pasta de Moro.

A artimanha de Bolsonaro ficou óbvia, como a Folha mostrou no começo da noite de quinta (23), e a promessa de Moro de deixar o governo caso a recriação do Ministério da Segurança fosse em frente assustou o presidente.

Houve amadorismo na tentativa de Bolsonaro, já que suas digitais apareceram no processo —a começar pela conversa prévia que teve com o fiel aliado Anderson Torres.

Secretário da Segurança do Distrito Federal, Torres levou a ideia da recriação da pasta para a reunião com seus pares, para depois entregá-la ao presidente em encontro.

Já na Índia, Bolsonaro baixou o fogo da frigideira sob o ministro e disse que não fará nada, ressalvando para bons entendedores que “neste momento”. Pontualmente, a crise foi controlada, e Moro demonstrou firmeza inexistente nos episódios anteriores.

O que significa que permanece como uma força isolada no governo, fazendo sombra ao titular do Planalto.

Aqui entra o segundo ponto nevrálgico do xadrez. Nas crises anteriores, que quase levaram à demissão de Moro entre agosto e setembro passados, no centro sempre esteve a divergência entre presidente e ministro acerca dos interesses da primeira-família.

Especificamente, o caso do filho senador do presidente, Flávio (RJ), alvo de extensa investigação sobre suas relações com milícias no Rio de Janeiro —inclusive com suspeitos de mandar matar a vereadora Marielle Franco e seu motorista, em 2018.

Nada contraria mais Bolsonaro do que esse caso. Segundo aliados, porque ele se vê perseguido injustamente.

Para críticos, pelo risco existencial ao governo que eventuais revelações podem trazer.

Seja qual for a verdade, o que é certo é a disposição do presidente de promover a proteção de seu clã.

Ele o fez, por exemplo, quando emasculou o antigo Coaf, unidade de controle de movimentações atípicas de onde surgiram os primeiros dados comprometedores envolvendo Flávio.

No ano passado, conseguiu ver fora da Polícia Federal do Rio, que tem interface importante com as investigações estaduais, o superintendente que considerava independente demais. Quando avançou para trocar o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, Moro bateu o pé e recusou.

O assunto segue indigesto. Aliados de Bolsonaro dizem que ele não irá desistir da mudança, que seria mais facilmente executada se a PF estivesse fora da alçada de Moro, o que a recriação da pasta da Segurança garantiria.

Como essa tática teve de ser abandonada por ora, dizem bolsonaristas, a opção será por tentar forçar a mudança.

A PF participa, de forma direta ou não, de várias apurações relativas ao clã Bolsonaro: como Moro lembrou no Roda Viva, o inquérito sigiloso que apurou a operação-abafa que se criou no Rio para salvar os mandantes da morte de Marielle e de seu motorista foi quase todo conduzido sob sua batuta.

Esse recado também caiu mal no Planalto. Novamente, a lógica do ângulo é a que vale. Aliados do presidente viram uma ameaça velada, na linha “eu sei”, em um tema sensível que não diria respeito a Bolsonaro. Para críticos, o mandatário máximo tem algo a temer em termos de conexões constrangedoras com sua família.

Para o lugar de Valeixo, há opções na mesa, a começar pelo próprio Anderson Torres. Contra ele, que é delegado federal, pesa a saída turbulenta da corporação, quando foi acusado —e depois inocentado— de ter participado de tortura de um suspeito.

Outro nome é o do delegado federal Alexandre Ramagem. Ele coordenou a segurança de Bolsonaro após a facada da campanha de 2018, ganhando sua confiança.

No ano passado, foi deslocado para chefiar a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), onde sua desenvoltura lhe angariou adversários na ala militar do governo e na PF.

Esse emaranhado de variáveis será determinante para a situação do ministro. Em novembro, a aposentadoria compulsória de Celso de Mello abrirá uma vaga no Supremo Tribunal Federal, que seria de Moro segundo acordo que Bolsonaro depois desmentiu.

Alguns interlocutores do presidente especulam que ele levará o ministro em banho-maria até lá e então cumprirá a antiga promessa.

Outros defendem que é melhor manter Moro próximo e lhe ofertar a vaga de vice na chapa da reeleição em 2022, embora isso pareça ilusório dado o grau de desconfiança que Bolsonaro tem dele. Como se vê, essa é uma novela com muitos capítulos à frente.

Fonte: Folha de S.Paulo
Créditos: Folha de S.Paulo