DECISÕES

Carta aos livres e democratas - Por José Roberto Batochio

Constitui truísmo o princípio geral do Direito de que a ninguém é dado ignorar a lei e que não se exime de culpa quem a desconhece

carta aos democratasConstitui truísmo o princípio geral do Direito de que a ninguém é dado ignorar a lei e que não se exime de culpa quem a desconhece. Ou seja, o desconhecimento da tipificação do delito não exclui a ilicitude, não elide a culpa, não descaracteriza o crime nem inocenta o criminoso. Forjado no Direito Romano, com o brocardo ignorantia legis non excusat (a ignorância da lei não escusa), manteve-se sólido e isonômico até nossos dias, valendo para o mais humilde, o mais ignorante, o mais simplório dos cidadãos. Mostra-se ainda mais imperativo aos operadores do Direito, sobretudo aos magistrados.

No espetáculo judicial-midiático a que assistimos, tão pasmos quanto indignados perante a violação sistemática dos básicos postulados do estado democrático de Direito, em que as decisões parecem press releases escritos para industriar a fúria de facções, a agitação das turbas, é tarefa difícil apontar qual seja o protagonismo de uma irregularidade processual, mas vem ao caso destacar a forma cavilosa e recorrente com que a Lei n.º 9.296, de 24 de julho de 1996, tem sido desrespeitada por agentes da autoridade a quem a República encarregou do zelo prioritário do ordenamento jurídico.

Ao se dar estrepitosa publicidade ao conteúdo dos autos da 24.ª fase da mal cognominada Operação “Lava Jato” (que ofende a lei e a sintaxe), mais uma vez se violentou a Lei. 9.296/1996, editada para regulamentar e integrar o inciso XII, parte final, do Art. 5.º da Constituição da República – o

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artigo declaratório dos direitos e garantias que, jamais será ocioso lembrar, veio a ser a carta de alforria da cidadania asfixiada e manietada pelos “anos de chumbo”, inscrevendo no Texto Maior da Cidadania direitos elementares do povo jamais reconhecidos pelos que se acham síndicos do poder ou por justiceiros que envergam toga.

O maltratado art. 8° assinala que “a interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.”

Autos apartados? Preservação do sigilo das gravações? Poderia a Lei ser mais clara e incisiva? In claris cessat interpretatio, é a primeira regra da interpretação das leis. As gravações e transcrições decorrentes dos chamados “grampos” apensam-se aos autos do processo penal pelo cadeado inviolável do segredo de justiça. Arrombá-lo fora das hipóteses legais constitui crime.

Podem ainda ser citados o § 1.º-A do art. 153 e o art. 325 do Código Penal, que tipificam como crime a divulgação indevida de material a ser mantido em sigilo funcional.

O ilícito penal avulta, já na origem, quando os investigadores, em sua cartilha persecutória segundo a qual a inocência é um defeito e réu inocente merece pena mínima, utilizam a astúcia de incluir, em listas de interceptação telefônica, nomes de pessoas que não estão sob investigação, mas que, por razões ainda não suficientemente esclarecidas, precisam – porque precisam – ser atingidas. No recente episódio da divulgação de conversas de um ex-presidente, embora ele grampeado

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com autorização judicial, foram publicados até diálogos com a atual presidente da República e com um ministro de Estado que recebeu chamada feita a partir de uma das linhas sob escuta – e tais pessoas não constavam da lista de investigados… Cabia destruir imediatamente o material anódino e quanto ao penalmente relevante encaminhá-lo aos Tribunais aos quais está afeto o julgamento dessas autoridades, em razão da prerrogativa do foro.

Não fora bastante, a indevida interceptação estendeu-se aos advogados com atuação na causa. Não só ao principal defensor direto da parte, mas a todo seu escritório. Profissionais de vários níveis, em contato com centenas de clientes, tiveram sua comunicação devassada – o que é crime definido em lei, com a cominação de pena de reclusão, de dois a quatro anos, e multa. A “extravagância” processual (sejamos eufêmicos) ainda se deu ao arrepio do artigo 7.º do Estatuto da Advocacia e da OAB (Lei 8.906/1994), que assegura ao advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Salta aos olhos que, em certos foros, aqueles que exercem a Advocacia são tratados como um estorvo ao inquérito e ao processo, por invocarem o primado do Direito e defenderem as formalidades prescritas na lei, o que fazem legitimamente, pois seu papel primordial é fazer valer o direito de defesa e zelar pelo rito procedimental democrático. Pode haver promotor, podem haver testemunhas, pode haver juiz, mas se advogado

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não houver jamais haverá justiça, pelo menos uma que seja digna de tal conceituação.

Nestes tempos bicudos seguem a ecoar as palavras de Cícero, “oh tempos! oh costumes!”, quando a prisão preventiva torna-se mecanismo de extração de confissões, réus são constrangidos a se auto-incriminar ou a se submeter às torturantes condições do nosso animalesco sistema penitenciário, o mero exercício da autodefesa é visto como “obstrução da investigação” e ensejador de prisão preventiva, “delação por ouvir dizer” ganha foros de prova documental, a condução coercitiva precede a intimação para depor, sobretudo nessa ambiência em que se emulam os estados policiais, urge preservar a liturgia democrática, o devido processo legal e a ética procedimental. Vale mais uma vez lembrar Rui Barbosa, na passagem em que nosso maior jurisconsulto evocou “aquela noite da consciência moral” da França, quando os “girondinos escreviam à Convenção que as formalidades da lei embaraçam o tribunal, que a loquacidade dos advogados retarda a justiça, que depoimentos e debates são inúteis perante um juiz de convicção formada.”

Entre a prova legal e a convicção pessoal, o magistrado só pode ter a opção da Lei. Como em outros ramos do conhecimento, também no Direito a conclusão depende de premissas empíricas e a sentença tem de ser filha consequente da prova legalmente garimpada. A convicção pessoal, vestíbulo do prejulgamento, pode se formar a partir de doutrinas, inclinações políticas, ideológicas, e até de deformidades idiossincráticas, mas é apenas vento no moinho das provas. Sentenças herméticas,

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echeadas de filosofices, podem constituir exercícios de retórica, porém, ainda lembrando Marco Túlio Cícero, só implicam abuso da paciência.
Na mesma medida em que se institui sigilo fechado, arbitrário e ilegal, em determinados processos, negando o necessário e legítimo acesso dos advogados aos adminículos, fazendo-os somente conhecer as acusações pela imprensa, e assim contrariando a Súmula Vinculante n.º 14 do Supremo Tribunal Federal, dá-se publicidade ao que a lei, de fato, manda resguardar em segredo de Justiça.

Coloca-se o atônito Corpo Social diante de uma escolha de Sofia: ou admite que aqui não se conhece a lei ou reconhece que ela não é respeitada.

Quem não conhece ou não respeita a lei pode impô-la aos seus semelhantes, punindo-os por sua desobediência?
Lembrando numerosos casos na História de homens que acabaram por provar do veneno que inocularam nas ruas, como Maximilien de Robespierre, se não por outras e justificáveis razões, a prudência recomenda que não se desrespeitem os advogados, pois de um deles se pode precisar, dia desses…

Advogado Criminalista, Ex-Presidente Nacional da OAB, Ex-Deputado Federal.

Fonte: Brasil 247