CAIXA D'ÁGUA: "governo é pra sofrer". - A crise, Shakespeare e a banda Calypso - Por Amin Stepple

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* Amin Stepple

 

O folclore político da Paraíba registra a existência de uma personalidade que viveu os seus melhores momentos nos anos 60 e 70. O popular Caixa d’água, tido por alguns como doido, mas muito inteligente.  Como uma das mais famosas personagens teatrais da dramaturgia universal, Blanche Dubois (de “Um bonde chamado desejo”, de Tennesse Williams),  Caixa d’água sempre dependeu da boa vontade de estranhos para viver. E os estranhos, muitas vezes, eram governadores e prefeitos. João Agripino, por exemplo, governador da Paraíba (1966-71), acolhia com boa vontade Caixa d’água, elegante nos ternos incongruentes e doados. Há uma curiosa tradição na Paraíba, entre outras bem republicanas (aspas, para quê?): os políticos sempre presenteiam com gravatas e paletós figuras folclóricas.

Depois das solenidades, às vezes o governador convidava Caixa d’água para almoçar com ele no Palácio da Redenção. Depois de participar do banquete palaciano, o comensal se dirigia ao Ponto Cem Réis, tradicional reduto de acaloradas escaramuças políticas de João Pessoa. Lá, estimulado por uma plateia provocativa, Caixa d’água começava  a falar mal do governo João Agripino. Os áulicos do governador se irritavam com a ingratidão e lembrava-lhe que ele acabara de saciar a fome na mesa de João Agripino. A resposta de Caixa d’água era curta e sábia: “governo é pra sofrer”.

O vaticínio de Caixa d’água se aplica hoje, à perfeição, ao Palácio do Planalto. Desde que assumiu o segundo mandato, o governo Dilma sofre. O bombardeio é  intenso. São muitas as trincheiras: políticas, econômicas, institucionais, judiciais e até policiais.  As teorias conspiratórias se multiplicam, ao sabor dos dias. Palavras historicamente datadas, a exemplo de renúncia (da época de Jânio Quadros e sua vassoura voadora) e impeachment (da era saturnal do redivivo Collor) foram outra vez ressuscitadas e incorporadas ao vocabulário político e jornalístico. Vez por outra, um alucinado exuma Getúlio Vargas e imagina outra carta-testamento.  Até os órfãos dos miliquinhas de Médici emergem, saltitantes, de antigos porões. Mas do que uma crise política, que não começou ontem, acacianamente sistêmica, há um cinismo impudico no uso e abuso do idioma.  Numa democracia,  fragilizada pelos próprios capos que a construíram, as primeiras vítimas, ao que parece, são as palavras. Curra semântica.  Vive-se a adoção plena da novilíngua de Orwell: renúncia é grandeza, golpe é governabilidade.

Se os atores não fossem tão canastrões, estaríamos já no ensaio geral de um  drama shakespeareano. Ainda bem que são mais aptos às gags da chanchada.  Mesmo assim, qual das 37 peças que Shakespeare escreveu representaria melhor e com mais fidelidade a crise política brasileira hoje? Qual delas ajudaria o país a exorcizar esse momento baixo-astral da nossa balzaquiana democracia? “A Comédia dos Erros”, escrita em 1594? A trama brinca com a duplicidade de personagens, gêmeos que se metem em confusão. Apesar do título pertinente, a presidente Dilma não tem sequer uma sósia. O estilo dela, segundo os backing vocals do rock pauleira de Brasília, é pessoal e intransferível.  Já “Ricardo III” é uma das mais pesadas. Como tantas outras, gravita no círculo do poder. Henrique IV é um homem bom e generoso, porém o seu governo é fraco e incompetente. É deposto e assume o trono um tirano, Ricardo III, que bota pra quebrar. Só lembrando, pela Constituição Federal, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, é o terceiro na ordem de sucessão. É uma boa?

Uma das últimas peças que Shakespeare escreveu foi “Henrique VIII”.  O enredo, sempre baseado na disputa insana pelo poder, não é o mais adequado para a Brasília atual. Poderia ter sido encenada no início dos anos 60. O rei Henrique VIII, em vida, caiu do cavalo e ficou puxando por uma perna. Igual a quem? Ao ex-presidente Jango Goulart, que também mancava (outro péssimo cavaleiro). Já os militares, que apearam Jango do poder, não cultivavam simpatia por manifestações teatrais. Na América Latina, quando um general desce de um cavalo fica difícil fazê-lo montar de novo.

A crise é assunto obrigatório em todos os ambientes. Sempre converso com o amigo e economista Esquerdinha. Ele é um workaholic convicto e tem, digamos, uma vocação proustiana para relatar fatos mundanos. A madeleine (aquele mítico biscoito do romance de Proust) de Esquerdinha se mimetiza num rótulo vermelho. Colega de copo, depois da segunda dose de Joãozinho Caminhante, ouvi o solilóquio de Esquerdinha sobre a crise política. Para ele, citando o título de uma peça de Shakespeare, “bom é o que acaba bem”.

Na terceira dose de Joãozinho Caminhante, Esquerdinha revelou, em tom conspiratório, que a origem de toda a nossa crise é sentimental. Lembrou a recente  frase da presidente Dilma de que o país irá superar as dificuldades com muito amor no coração. Isto: o coração dos brasileiros é uma lareira de filme sueco. Para ele, é inaceitável a separação do casal Chimbinha e Joelma, da banda Calypso, suposta fonte oculta de todos os problemas nacionais. Tudo bem que governo é para sofrer, como preconizava Caixa d’água, mas o fim desse romance poderia esperar a presidente Dilma concluir o mandato.  No quarto Joãozinho Caminhante, a emoção foi inenarrável.  Esquerdinha, com a sua voz tamanha, cantarolou um dos sucessos da banda Calypso: “Sem medo de falar”. Isto!

* Jornalista