Boatos e agressões

Ritual religioso contra a covid teve reza, criança amarrada e 9 indiciados

Construir uma arca igual à de Noé e rezar para Nossa Senhora, que intercederia junto a Deus, para o coronavírus ser expulso do planeta. Foram estas as orientações que uma menina de 8 anos repassou aos parentes em meados de abril, depois de ser visitada por uma visão da Virgem Maria. Considerando-se escolhida de Deus, a família de Bragança, cidade do interior do Pará, seguiu as instruções da criança como pôde. Um círculo desenhado no chão fez as vezes de arca, mas a parte da oração foi cumprida à risca.

Eram necessárias 24 horas de reza diária e os adultos exigiram que até as crianças virassem a madrugada em vigília e jejum. Nem um menino com problemas de saúde mental foi poupado. Ele teve os braços amarrados quando se recusou a orar. No ápice do ritual, uma garota se colocou de braços abertos na frente de uma cruz, imitando a crucificação de Jesus. A essa altura, o bebê de colo chorava de fome. A polícia chegou antes que a revolta dos vizinhos se materializasse em violência. Juntando avós, pais e tios das crianças, houve nove indiciamentos por maus-tratos.

Revelações
A história de fé começou em janeiro, quando a menina de 8 anos relatou que Nossa Senhora apareceu para ela pedindo orações, segundo a delegada Luciana Tunes, da Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente de Bragança. A policial afirma que a garota contou o teor da conversa com a santa aos parentes. Somente as mulheres da família deram ouvidos à revelação e começaram a rezar.

Mas as aparições continuaram e outra menina, de 9 anos, também passou a relatar visões da Virgem. A situação mudou de patamar em 11 de abril, de acordo com a delegada. Nesse dia, Nossa Senhora surgiu de novo e avisou que tinha uma mensagem de Deus. A família foi escolhida para livrar o mundo do mal, a covid-19.

Além da recompensa conjunta à humanidade com o fim da pandemia, os parentes receberiam uma graça por construir a arca e orar por uma semana. O garoto doente seria curado. Desta vez, a adesão foi total.

O círculo representando a arca foi desenhado no chão do terreno da casa dos avós da garota, que fica na Vila do Treme, zona rural de Bragança, distante 210 quilômetros de Belém. Próximo da “arca” foi fincada uma cruz num monte de areia e as ave-marias se sucediam, intercaladas por um ocasional Pai-Nosso.

A delegada contou que os familiares fizeram questão de espalhar a notícia das visões e falar em grandes feitos. “No dia 12 [de abril], uma das mulheres começou a divulgar para a comunidade que aconteceria um milagre”, afirmou.

Imitando Jesus
A história da Vila do Treme tem vários elementos sensíveis: religião, fé e criação de filhos. A Justiça e o Ministério Público não se manifestam porque há crianças envolvidas. Mas os acontecimentos podem ser reconstituídos a partir da investigação policial, do relatos de conselheiros tutelares que estiveram no local e por nove vídeos que mostram o desenrolar dos fatos.

Esta reconstituição aponta que, conforme o ritual avançava, a família entrou em estado de transe. Os adultos faziam jejum e autorizavam as crianças a fazer no máximo duas refeições por dia. As orações não podiam ser interrompidas. A vigília da madrugada começava às 19h e ninguém arredava o pé até as 5 horas da manhã.

“A investigação constatou que as crianças passavam a noite orando e dormiam alguns momentos do dia. Isto ocorreu do dia 12 para 13 de abril e de 13 para 14 de abril”, disse a delegada.

A situação alcançou tons de fanatismo. O menino não quis mais participar do ritual religioso e teve os braços amarrados à frente do corpo, como quem é algemado. A delegada ressalta que o nó era frouxo e não deixou marcas ou ferimentos.

“Passaram uma corda fina como um barbante em volta dos braços. Era folgado, mas foi um dos atos de maus-tratos porque eles [adultos], de alguma forma, expuseram essa criança a risco.”

Naquela manhã de 14 de abril, a menina de 8 anos pediu uma bata batismal branca com duas fitas vermelhas, encostou as costas na cruz e abriu os braços, simulando o sacrifício de Cristo. Familiares usavam capas e uma tia interpretava Nossa Senhora, contou o conselheiro tutelar Jorge Sousa.

Nesse estágio da adoração à santa, terços e crucifixos eram empunhados durante as ave-marias, repetidas sob o sol da Amazônia. O bebê chorava tanto que os vizinhos escutaram e se incomodaram. O comportamento destruiu a reputação da família, muito considerada na Vila do Treme até então.

A lista de qualidades incluía a religiosidade. Todos eram católicos praticantes e alguns integravam a Pastoral da Criança. O TAB procurou a catedral de Bragança para saber qual avaliação a liderança religiosa faz do episódio, mas o padre não quis comentar o assunto.

A instalação do caos
Irritados, os vizinhos cercaram o local onde se desenrolava o ritual, o terreno da casa dos avós das crianças. Mensagens chegavam ao Conselho Tutelar e à Polícia Civil.

“A vizinhança estava irritada e o último áudio que chegou falava que se o Conselho [Tutelar] não fosse com polícia à comunidade, eles estavam preparados para invadir e tirar as crianças”, relatou Jorge Souza.

A Polícia Civil foi acionada, mas o interior do Pará tem distâncias longas e estradas ruins. Mesmo com a pressa que o caso exigia, levou 45 minutos para os agentes vencerem o percurso. Ao chegar, encontraram uma situação quase fora de controle.

O tio das meninas disse aos agentes da Polícia Civil que conversaria depois da oração. Falava com um bebê de 1 ano e dois meses numa mão e terço na outra. Ele explicava que era importante priorizar a reza. “É pelo fim da pandemia, nós estamos orando aqui para vocês. Para proteger vocês”, justificou antes de engrenar um Pai-Nosso.

Uma conselheira tutelar se aproximou com jeito e pegou o bebê dos braços dele. O ritual virou barraco. A mãe do menino berrou: “Meu filho não, meu filho não!” Foi atrás da conselheira, mas os parentes a alertaram que estava saindo da “arca”. Voltou contrariada e xingou os conselheiros e policiais: “Demônios, demônios.”

Escalada de violência
A liberação do bebê encorajou um casal de vizinhos a caminhar até a cruz fincada sobre um monte de areia. Vestida com uma bata branca, no papel de Jesus crucificado, a garota que tinha visões de Nossa Senhora resistiu a ser arrancada do lugar. Uma mulher da família começa a gritar: “Maria sempre vence e o inimigo sempre perde”.

A menina correu e abraçou a cintura da tia, que puxou para frente as pontas da bata que envolvia a garota. A vizinha voltou à carga, enfiando as mãos por baixo do braço da menina e puxando. Tia e sobrinha foram rebocadas, mas não se desgrudaram.

Ao segurar a bata, a tia deixou as duas tão juntas que pareciam siamesas. Mas um homem apelou para a força bruta. Meteu a mão entre tia e sobrinha e desacoplou ambas. A menina ficou irritada porque estava cumprindo uma missão.

“Uma das crianças que disse que falava com Nossa Senhora acredita que tem este dom e haveria cura, através das orações”, explicou a delegada.

Negociação delicada
Acuada, a família entrou na casa dos avós com uma criança que ainda não tinha sido resgatada. A vizinhança queria invadir e os agentes da polícia pediram que se afastassem, para ficarem no local somente eles e os conselheiros tutelares. Uma negociação para entrar no imóvel começou enquanto a turba defendia botar porta abaixo e prender todo mundo.

Por fim, foi autorizado o acesso à casa de alvenaria sem reboco, carente de móveis e com algumas roupas amontoadas num canto. A caixa térmica onde se lia “sorvete” combinava com a atividade laboral da família de ambulantes que vive de vender todo tipo de produto.

Eles se esconderam em um dos quartos, embaixo de um pano branco com uma cruz. O tecido fino permitia ver os vultos agachados ao redor da criança e a ave-maria continuava. Um policial puxou a ponta do pano e ouviu impropérios. “Vocês não são os donos do mundo”, vociferou uma mulher.

O avô estava mais calmo e entregou a menina. A confusão estava acabada. Começava a investigação policial.

Boatos e agressões
As crianças passaram por exame de corpo de delito, que não apontou ferimentos, e foram levadas para um abrigo da cidade. Todas foram incluídas na rede de proteção da Justiça. Três adultos prestaram depoimento, ainda naquele 14 de abril. Ninguém foi preso.

A vontade da vizinhança em fazer justiça com as próprias mãos não arrefeceu. No dia seguinte, a casa foi invadida e houve agressões, afirmou o conselheiro tutelar. A delegada conta que ninguém prestou queixa. A hipótese mais forte é que o silêncio foi mantido por medo de dar motivo para maiores violências.

A investigação do caso contou com 27 depoimentos, entre crianças, adultos, vizinhos e conselheiros tutelares, e análise de gravações de celular. Além de determinar responsabilidades, era preciso separar os fatos dos boatos. Na internet se espalhava a versão de que havia livros de ocultismo e feitiçaria na casa e o ritual terminaria em sacrifício das crianças.

Vizinhos declararam à Polícia Civil informações neste sentido, mas a delegada afirmou que nada foi provado na investigação. Mas Tunes declarou que a liberdade religiosa avançou sobre o direito das crianças terem acesso à alimentação e serem criadas num ambiente sadio. Por este motivo, os nove adultos foram indiciados por maus-tratos e responderão e liberdade a eventual processo.

São pais, tios e avós de cinco crianças que participavam das rezas e do jejum em pelo menos algum momento do ritual, programado para durar uma semana, e que durou quatro dias. A pena prevista em caso de condenação é de dois meses a um ano de prisão, com aumento de um terço do tempo por envolver menores de 14 anos.

A Justiça e o Ministério Público do Pará informaram que o caso corre em sigilo porque há crianças envolvidas, motivo que fez a reportagem do TAB não divulgar o nome dos adultos, o que levaria à identificação das crianças. As conclusões da Polícia Civil foram protocoladas nesta semana junto ao fórum. Procurada, a família não quis se manifestar, seguindo orientação do advogado.

Fonte: UOL
Créditos: Polêmica Paraíba