Polêmicas

Precatórios e a campanha histórica da OAB

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Nonato Guedes

A Ordem dos Advogados do Brasil comemora o desfecho de uma mobilização marcada por suor, lágrimas e paciência: a sua luta em defesa da eficácia de decisões judiciais e garantia do pagamento de créditos conhecidos como precatórios ao cidadão que entrou em litígio com o poder público e teve seus direitos respeitados pela Justiça. A luta chegou ao fim no último dia 14, quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu ser inconstitucional a Emenda 62/2009, tal como argüiu a OAB na Ação 4357 que ajuizou naquela Corte. Em sua página na Internet, a OAB diz que celebra o coroamento do amplo movimento encampado contra o “eterno calote” no pagamento dos referidos débitos. Campanha que levou a entidade a marchar pelas ruas do país e registrou a perda de vidas de milhares de cidadãos sem que pudessem ver a quitação de seus créditos reconhecida.

O histórico da questão revela que a mobilização é antiga. Teve início antes da Emenda 62, quando centenas de cidadãos e entidades representativas da sociedade civil procuraram a Ordem dos Advogados do Brasil para reclamar da morosidade no pagamento de créditos que, apesar de já admitidos em outras sentenças judiciais, não avançavam em termos de pagamento, permanecendo no terreno das promessas vãs. Em 2009, estimava-se que o valor total dos precatórios ultrapassava R$ 100 bilhões em todo o território nacional. O município de São Paulo, sozinho, devia R$ 14 bilhões em precatórios. O Estado do Rio Grande do Sul somava, na mesma época, um passivo de mais de R$ 8 bilhões, e o Distrito Federal, apesar de pequeno geograficamente, registrava uma dívida de R$ 3 bilhões. O rombo nos precatórios, no entendimento da OAB, não só desprestigiava a segurança jurídica, uma vez que decisões judiciais condenando o poder público a pagar suas dívidas simplesmente eram descumpridas, mas também fez com que milhares de cidadãos morressem sem nunca terem recebido um centavo de seu crédito.

A descrença e a eterna espera pelo recebimento dos precatórios originaram, no Rio Grande do Sul, o Movimento das Tricoteiras dos Precatórios. O grupo de idosas mulheres gaúchas chamou a atenção do país por se reunir semanalmente desde 2006, diante do Palácio Piratini, sede do governo local, para tricotar uma manta que chegou aos 200 metros. O protesto silencioso tinha grande significado: mostrar a paciência infinita que credores de precatórios deveriam ter para receber, um dia, os seus direitos. O gigantesco tricô foi entregue à OAB Nacional na Marcha em Defesa da Cidadania e do Poder Judiciário, organizada pela entidade no dia seis de maio de 2009, e ao então presidente da Câmara Federal, Michel Temer, atualmente vice-presidente da República. O tricô entregue à OAB e Temer foi apenas uma parte da longa tira de lã que simboliza as décadas em que as viúvas e credoras já aguardavam pelo pagamento das dívidas. Integrantes do grupo morreram tragicamente no acidente com o voo 3054 da TAM que se chocou contra um depósito de cargas nas proximidades da cabeceira da pista do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. As tricoteiras haviam saído de Porto Alegre em direção à capital paulista a convite da OAB para participar do Movimento Nacional contra o Calote Público, quando se deu o acidente fatal.

No dia seis de maio de 2009, cerca de 4 mil pessoas, entre advogados, magistrados, membros do Ministério Público, representantes de entidades da sociedade civil e ara-pintadas do movimento estudantil, participaram de uma passeata organizada pela OAB denominada “Marcha em Defesa da Cidadania e do Poder Judiciário”. O movimento repudiou o teor de uma PEC já aprovada no Senado que instituía o mecanismo do leilão dos precatórios com grande deságio e beneficiava Estados e municípios que não cumpriam com as decisões judiciais em seu desfavor. Apoiada por 170 entidades e empunhando faixas com críticas à PEC 12/06 e à não quitação dos precatórios, a marcha percorreu em silêncio, sob um sol escaldante, os três quilômetros entre a sede do Conselho Federal da OAB e o Congresso Nacional, passando pela Esplanada dos Ministérios. Os participantes criticaram com veemência o senador Renan Calheiros (PMDB) e o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, considerados mentores da Proposta de Emenda Constitucional 62, batizada “PEC do Calote”. Ao final da passeata, os signatários do manifesto e a presidência da OAB entregaram a Michel Temer, na rampa do Congresso, reivindicações contra a aprovação da proposta no Congresso.

Em paralelo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA examinou casos envolvendo a inadimplência no pagamento de precatórios por entes públicos no Brasil. O argumento principal para que as matérias chegassem à Comissão foi o fato de ter ocorrido o esgotamento de todos os recursos de jurisdição brasileira sem que os pagamentos tivessem ocorrido, princípio base para o acionamento dos órgãos jurisdicionais internacionais. O cenário piorou em nove de dezembro de 2009 quando, apesar das várias tentativas e manifestações de resistência da OAB junto ao Congresso, foi promulgada a Emenda 62/2009, que já nascia torta, para atender exclusivamente aos interesses do poder público, como denuncia a Ordem. A Emenda impôs significativa alteração ao artigo 100 da Constituição Federal, passando a ferir gravemente a ordem cronológica de pagamento dos precatórios, a instituir um leilão com enorme deságio para o dono do crédito e a prever que a amortização dos débitos judiciais acontecesse em até quinze anos. Além disso, fixou limites absurdamente baixos para o pagamento das dívidas de 2% da receita corrente líquida para Estados das regiões Sul e Sudeste e de 1,5% para Estados das demais regiões.

Em 15 de dezembro de 2009, insurgindo-se contra o que chamou de calote dos precatórios, o Conselho Federal da OAB ajuizou no Supremo a ADI 4357, por considerar a Emenda 62 um dos maiores ataques ao Estado Democrático de Direito desde o fim da ditadura militar. O ministro Ayres Britto votou, no dia seis de outubro de 2011, pela derrubada da Emenda 62, por considerar que afrontava cláusulas pétreas, como a de garantia de acesso à Justiça, a independência entre Poderes e a proteção à coisa julgada. O julgamento foi suspenso naquela data após pedido de vista do ministro Luiz Fux e retomado somente em 07 de março de 2013, depois que o presidente nacional da OAB, Marcus Vinícius Furtado, requereu a preferência no exame da matéria. No dia sete de março, Fux acolheu a ação da OAB no ponto que trata da compensação de créditos, considerando inconstitucional exigir que um credor, para receber o que lhe é devido a título de precatórios, não tenha nenhuma dívida de tributos pendente com o poder público. Na sessão do último dia 13, o Plenário considerou parcialmente procedente a Adi nos pontos que tratavam da restrição a preferência de pagamento a credores com mais de 60 anos de idade, da fixação da taxa de correção monetária e das regras de compensação de créditos. Finalmente, na noite do dia 14, o Plenário do Supremo, acompanhando o voto de Ayres Britto e o voto vista do ministro Fux, concluiu o julgamento para declarar inconstitucionais dispositivos do artigo 100 da Constituição Federal que instituiu regras gerais de pagamento, e integralmente inconstitucional o artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que criou e instituiu o parcelamento do pagamento dos precatórios por até 15 anos. Para a OAB, houve, no final das contas, uma vitória da cidadania.