É consenso entre os analistas políticos e palpiteiros diversos que a entrada de Marina Silva no jogo da eleição presidencial embola o meio de campo e, em consequência, assusta os líderes desta corrida, Dilma Rousseff e Aécio Neves. Mas, em termos práticos, de onde vem este medo? Não da coligação partidária da candidata, menos estruturada do que as do PSDB e PT e que lhe renderá tempo de TV proporcionalmente muito menor do que os partidos citados. Mesmo os 20 milhões de votos de 2010 não seriam motivo suficiente para tanta preocupação, afinal cada eleição é um jogo novo.
Minha aposta é que Marina Silva traz para as eleições deste ano, por força do destino, um elemento que estava ausente: a força do símbolo. Várias pesquisas mostram que uma parcela significativa dos eleitores querem “mudança”, mas nenhum dos candidatos, sequer Eduardo Campos, estava conseguindo personificar este desejo latente na sociedade. Diante desta ausência de forças simbólicas, a inércia ia apontando para uma disputa quase plebiscitária.
E é aí que a chegada de Marina muda tudo. Ela traz consigo a possibilidade de ser a encarnação viva desta mudança. Mas o que torna sua entrada na disputa eleitoral ainda mais explosiva e imprevisível é o fato de, tal como Lula no seu momento, ela encarnar vários dos elementos do “monomito” ou “jornada do herói”, necessários, segundo Joseph Campbell, formulador da teoria, para criar mitos e, por meio de uma narrativa bem armada, perpetuá-los no inconsciente coletivo.
Estes elementos foram arrumados por Christopher Vogler, famoso roteirista de Hollywood, para que ficassem mais adaptados às narrativas contemporâneas. Esta adaptação gerou um famoso memorando interno que passou a orientar o processo de roteiros dos filmes e animações da Disney.
E qual seria, então, a jornada do herói da Marina Silva? Bom, vamos seguir os 12 passos desta aventura, tal como propostos por Vogler, a partir do trabalho de Campbell. Obviamente, várias passagens da vida da candidata poderiam ajudar a preencher esta narrativa. Eis a minha aposta:
Ato I – Apresentação
Mundo Comum – Conhecemos a origem de vida de Maria Osmarina Silva, que só se tornaria “Marina” depois, graças ao apelido dado por uma tia, as dificuldades de sua família, que morava em uma palafita, em sobreviver do extrativismo em plena floresta, a morte da mãe quando ela tinha 14 anos, o fato de que até os 16 anos não sabia ler ou escrever.
Chamado à aventura – Aos 15 anos uma primeira grande mudança em sua vida, talvez a mudança determinante: Marina é obrigada a morar em Rio Branco, capital do Acre, para tratar da malária.
Recusa do chamado – Ter de sair do seio da família não deve ter sido fácil. Ainda mais porque na mesma época duas de suas irmãs morrem, de sarampo e malária.
Encontro com o mentor – Em 1974, com 16 anos, Marina conhece Dom Moacyr Grechi, então bispo do Acre, que a recebe na casa das irmãs Servas de Maria. Ela chegou a pensar em ser freira. Outro mentor, provavelmente o mais importante, foi Chico Mendes, com quem fundou a Central Única dos Trabalhadores do Acre e com quem lutou juntos pelos direitos dos seringueiros.
Travessia do Primeiro Limiar – Ainda em 1974, Marina se matricula no Mobral (movimento de alfabetização de adultos criado pelo governo militar) e aprende a ler e escrever. Um ponto “sem retorno”. Sem dúvida algo transcendental em sua vida.
Esquema clássico da Jornada do Heroi
Ato II – Conflito
O ventre da baleia (testes, aliados e inimigos) – Com certeza foram muitos “testes” até mostrar o seu valor, como quando se candidatou a deputada federal pelo PT em 1986 e não foi eleita. Ou quando Chico Mendes foi assassinado em 1988, no mesmo ano em que foi eleita vereadora em Rio Branco. De frente já criou vários inimigos ao questionar os privilégios financeiros dos vereadores e a devolver todos os benefícios aos quais julgava não ter direito. Mais um teste veio com a descoberta da sua doença causada pela exposição ao mercúrio e outros metais pesados nos tempos de seringueira. Foi eleita a senadora mais jovem da República em 1994 e depois reeleita em 2002.
Aproximação da “caverna oculta” – na tipificação de Vogler/Campbell este é o momento em que de posse de uma “arma mágica”, nosso herói chega à caverna do inimigo. No caso da Marina, esta arma poderia ser sua vida inteira de luta por temas ambientais e de direitos dos povos das florestas. Isso lhe deu legitimidade para assumir o cargo de Ministra do Meio Ambiente no governo Lula.
Provação suprema – O momento do embate com o antagonista. E quem seria este antagonista? Vários possíveis: os interesses do agronegócio, a visão desenvolvimentista a qualquer custo do governo e, no limite, a então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, agora sua antagonista real na corrida para a Presidência da República.
Recompensa – Seria a hora de o herói ganhar seu prêmio por vencer o antagonista. Mas Marina Silva não venceu diretamente esta batalha como ministra. Pediu demissão e, com isso, sua vitória foi mais sutil: consolidou sua imagem de coerência e palmilhou seu caminho para ser a preferida daqueles que querem “mudar isso que está aí”.
Ato III – Resolução
Caminho de volta – O herói volta “para casa”, se reconstrói e prepara o caminho para reemergir. Marina fica em terceiro lugar nas eleições de 2010, prepara a criação de uma nova força política, a Rede Sustentabilidade, que, apesar dos percalços, segue seu rumo e lança-se novamente na aventura política presidencial em 2014, como candidata a vice na chapa montada pelo PSB.
Ressureição – Revivido por “poderes mágicos”, ou pela providência divina, o herói volta. Por força de uma tragédia inesperada que levou a vida do candidato Eduardo Campos e de mais seis pessoas, Marina é alçada à cabeça da chapa, com condições concretas de chegar à Presidência.
Retorno com o elixir – O herói retorna com a uma “solução mágica”, que no caso da Marina Silva seria, logicamente, a Presidência da República. Esta parte do mito está sendo escrita neste momento. E ainda não é possível saber se a jornada do herói de Marina Silva vai se completar desta forma.
O fato é que se bem trabalhada esta jornada pode resultar em uma narrativa muito poderosa. O mesmo tipo de narrativa, por exemplo, que cerca a imagem do Lula e que o transformou em um símbolo. E é muito difícil combater símbolos e mitos. Especialmente quando eles encontram ressonância com o momento em que a sociedade vive.