História inesperada - Rubens Nóbrega

Anteontem, meio da tarde. Ele chegou, pediu licença para dividir a mesa do cafezinho que eu ocupara há pouco com o netbook para escrever e sentou-se na cadeira da frente, já puxando conversa antes do primeiro gole.  Daí em diante e durante hora e meia, mais ou menos, contou-me um pouco ou muito sobre a sua vida. Vida sofrida, cheia aperreios, provações e privações desde o início, quando, ainda bebê de colo, perdeu o pai tragicamente.

Seu pai foi assassinado logo depois de ter matado outro homem, aparentemente em legítima defesa. Sua mãe foi obrigada a fugir da cidade. Faltou pouco para também ser eliminada na fúria da vingança pela morte que o marido causara.

A mulher deixou a criança aos cuidados de uma vizinha e partiu ligeiro. Foi se refugiar no interior do Rio Grande do Norte. Três anos mais tarde, a mãe adotiva viria a falecer. O menino mal começava a perceber sua própria existência. Não foi fácil viver e crescer naquela cidade. Na escola ou na rua, vez por outra era identificado, apontado e hostilizado por ser filho “do assassino de…”.“Você só dá pra ruim se quiser, porque você tem escolha. Você escolhe entre o bem e o mal. Se tivesse reagido a tudo que diziam de mim, como se eu fosse um bandido, teria virado marginal. Mas fui balaieiro, trabalhei pesado num bocado de coisa, mesmo menino, mas nunca me desviei”, relembra.

Conseguiu, não sabe como até hoje, concluir o ginásio no lugar onde se sentia renegado. Daí por que foi uma enorme felicidade ver-se, enfim, na idade de servir ao Exército e poder ir embora dali. Engajou-se, mas, bem antes do que gostaria, foi reformado. Por conta de um acidente que lhe tirou as serventias para a vida militar. Recuperado do desastre, resolveu conhecer outras terras e mundos.

Nessas andanças, foi bater em Uberaba, Minas, onde conheceu Chico Xavier. A partir daí, sua vida mudou. O contato com o médium lhe instaurou no íntimo a compulsão por ler e compreender a doutrina espírita, que lhe internalizou uma crença e o impeliu à irrecusável vontade de ser uma pessoa melhor. Lendo Chico e outros expoentes do espiritismo, entendeu melhor o sentido da vida terrena; sobretudo, ressalta, aprendeu a lidar com o sofrimento. Graças a esse aprendizado, não permitiu que suas tristezas e decepções lhe alimentassem e aumentassem no espírito amarguras e revoltas.

O entendimento fez dele um homem feliz, garante, dizendo isso de um jeito tal que transparece sinceridade e convicção absolutas. Não tenho porque nem como duvidar do que ouço, mas ouso, enfim, fazer perguntas. Perguntas que ele responde a todas com a mesma placidez e bonomia com que iniciou o monólogo que já agora evoluía para uma conversa.

Sinto que devo ir devagar, para não constranger nem afugentar o cidadão que parece à vontade em me confiar a trajetória de uma jornada existencial que até aquele instante já me parecia material suficiente para uma boa história.

Ele revela apreço e admiração por minha escrita e confessa que dela consegue extrair indícios de que este escrevinhador cultiva valores parecidos com os dele.Sinto-me gratificado pela revelação, expressão de um reconhecimento que tenho a satisfação de receber quase diariamente de gente a mais diversificada que me aborda para um cumprimento breve ou um papo mais longo e produtivo como aquele.

Nesse ponto, avalio que estamos perto de encerrar, mas ele me relata mais um triste acontecimento: a perda da filha caçula, três ou quatro anos atrás. “Aneurisma na aorta”. Foi o que tirou a vida da moça, então com 17 anos e já na faculdade. Curso de Arquitetura, se ouvi direito.

Traz à mesa a informação que me deixa um tanto desconsertado e ao mesmo tempo põe a mão dentro de uma bolsa tiracolo de onde arrasta um monte de fotografias. Mostra-me. Fotos dele com a família; entre as fotos, uma da menina que morreu precocemente. A garota muito bonita posa sorridente para a câmera. Está vestida com a camisa do time de futebol para o qual torcia. O time de coração do pai, claro. Mas de tudo isso ele trata com a mesma serenidade com que inaugurou nosso contato. A morte da filha foi uma enorme provação, reconhece, mas nem tamanho padecimento desmanchou-lhe a convicção de que Deus a levou para um lugar melhor.

A menção a Deus muda o rumo da prosa. Inspira-se e verbaliza críticas contundentes aos neopentecostais. “Eles exploram o demônio, falam muito mais no demônio do que em Deus”, observa.

Na sequência, narra episódios de atritos com pastores e padres que não lhe atenderam à curiosidade intelectual porque, quanto questionados por ele, “jogaram tudo na conta dos mistérios de Deus”. “Se tiverem humildade e adotarem o espiritismo, terão as respostas”, sugere, mesmo após qualificar com adjetivo nada religioso um expoente de uma daquelas igrejas.Ele se levanta, enfim, mas é para ir até o balcão, pagar o café com leite que tomara – frio, pelo visto e o tanto que demorou a tomar. Volta a sentar na mesma cadeira e me estende a mão.

Entendo o gesto como uma despedida e momento certo para lhe perguntar o nome e o que faz da vida, dados que me fornece entregando-me um cartãozinho de apresentação. Confiro os dados impressos e indago se posso contar a sua história aos leitores. Ele fita o teto do pavimento em que nos encontramos no shopping, volta a me olhar nos olhos e responde que não. Teme ver-se exposto. Melhor preservar-se. Melhor preservar a família. Temores remanescentes da desgraça que deu cabo à vida de seu pai e do homem que seu pai matou. Entendo, claro, embora tenha cometido este escrito à revelia do protagonista.

Antes de se levantar de vez, porém, faz uma última revelação: há muito, desde que se viu adulto, cuida de manter uma relação mutuamente respeitosa e compreensiva com os descendentes da vítima do seu pai. “Eu sei que eles sofreram muito com a perda deles, como sei que eles devem saber das minhas perdas e certamente compreendem que o meu sofrimento não foi menor. Afinal, além do pai, perdi minhas duas mães”, acentua.

Dito aquilo, aperta a minha mão novamente e me devolve à responsabilidade de produzir duas colunas numa mesma tarde-noite. Olho para o relógio do computador e constato que a conversa me encurtou o tempo para dar conta da tarefa.

Mas aí, quando começo a digitar, flui rapidamente a história de um homem que sofreu muito na vida, é verdade, mas também teve a felicidade de encontrar algo em que acreditar. É uma bênção ter uma crença assim. Porque somente por aí, talvez, seja possível ao homem se encontrar no bem, na fraternidade, na solidariedade, na dimensão do certo, do correto, do justo, enfim.