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Estatuto da Família é enorme retrocesso histórico: Casamento ou união estável entre homens e mulheres é um conceito errado

“A família não é mais singular. Ela é plural, tem inúmeras representações sociais. É quase um nazismo querer impor ao outro aquela sua convicção particular religiosa”, diz Cunha.

Estatuto da Família é enorme retrocesso histórico: Casamento ou união estável entre homens e mulheres é um conceito errado

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Impor convicção religiosa é “quase um nazismo”, diz presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família

ISABELA HORTA
Brasília
Para Rodrigo Cunha, o Estatuto da Família, que está em tramitação no Congresso Nacional, representa um “enorme retrocesso histórico”. Ele critica o conceito de família apresentado pelo projeto de lei como ‘casamento ou união estável entre homens e mulheres’.

“A família não é mais singular. Ela é plural, tem inúmeras representações sociais. É quase um nazismo querer impor ao outro aquela sua convicção particular religiosa”, diz Cunha.

Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), afirma que a aprovação do Estatuto criaria uma situação de insegurança jurídica no país, uma vez que a união homoafetiva já foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. “Já vai nascer inconstitucional. E os milhares de casais homoafetivos que já se casaram? O Estado vai ter de descasá-los? Olha que ridículo!”

O advogado critica a proposta de proibir a adoção de crianças por casais homossexuais presente no Estatuto da Família. “Não é a condição sexual do adotante que vai definir a sua conduta ética ou sua forma de criar e educar filhos. Quantos casais tradicionais educam os filhos tão mal?”

Cunha avalia que orientação sexual não deveria influenciar no processo de adoção. “Se for assim, seria necessário começar a investigar como é que o adotante gosta de ter relação sexual. Imagina! Você vai entrar na fantasia de cada um?”

Confira a entrevista:

1 – O Estatuto da Família é um assunto que vem rendendo polêmica no Congresso Nacional. De acordo com o projeto de lei apresentado, “família” seria definida como casamento ou união estável entre homens e mulheres. É uma definição compatível com os tempos de hoje? Esse conceito não exclui os diferentes tipos de família da sociedade?

Primeiro, é preciso esclarecer que há o Estatuto da Família e o Estatuto das Famílias.
O Estatuto das Famílias é um projeto de lei proposto pelo IBDFAM que tramita no Senado. Esse projeto trata da família plural, fraterna, aberta e que inclui todas as formas de família. A bancada religiosa, especificamente a evangélica, por ficar com medo disso, propôs um outro projeto de lei reduzindo o conceito de família apenas para homem e mulher. Aí é que mora o perigo.

A família não é mais singular. Ela é plural, tem inúmeras representações sociais. É quase um nazismo querer impor ao outro aquela sua convicção religiosa particular. Família não é um elemento da natureza. É um elemento da cultura. Então, o Brasil é um Estado laico ou, pelo menos, pretende ser um Estado laico. Colocar essa imposição de que família é só a união de homem e mulher, isso aí é um retrocesso histórico enorme.

2 – O que deve definir uma “família”?

O [Jacques] Lacan já definiu isso há muito tempo na psicanálise. Família é uma estruturação psíquica, onde cada membro ocupa um lugar, uma função. É um grupo de pessoas unidas pelos laços de afetividade e, às vezes, de consanguinidade. Então, seu cerne é o afeto.

3 – A união homoafetiva é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. E, de acordo com o último censo do IBGE, existem mais de 60 mil casais homossexuais no país. Se o Estatuto for aprovado pelo Congresso, que impactos teria para a comunidade LGBT esse conceito de família formado apenas pela união de homem e mulher?

Isso é um grande retrocesso histórico, não só para a comunidade internacional, mas para o próprio Brasil. A Suprema Corte do país, além de já ter reconhecido a união homoafetiva, já regulamentou até mesmos casamentos. Se essa lei for aprovada, já vai nascer inconstitucional. E os milhares de casais homoafetivos que já se casaram? O Estado vai ter de descasá-los? Olha que ridículo! O moralismo é sempre perverso. E esse Estatuto da Família que vem em nome da religião está cometendo o maior pecado, que é o de excluir tantas pessoas.

4 – O Estatuto pretende proibir o direito da adoção de crianças por casais gays. Atualmente, a adoção por homossexuais não está prevista na legislação, mas vem sendo garantido pela Justiça. Qual sua avaliação sobre essa proposta? É a favor da adoção por casais homossexuais?

Há um princípio maior que ordena tudo isso e que está expresso na Constituição: é o princípio do melhor interesse da criança. Será que é contra a criança ser adotada por um homem ou por uma mulher ou por dois homens ou duas mulheres? Vai depender do caso concreto. Não é condição sexual do casal que vai determinar isso. Não é a condição sexual do adotante que vai definir a sua conduta ética ou sua forma de criar e educar filhos. Quantos casais tradicionais educam os filhos tão mal? Então, não é uma garantia. Para adoção, a garantia é a condição psíquica dos casais e das pessoas de adotarem e não suas escolhas ou preferências sexuais.

5 – Que importância a orientação sexual deve ter no processo de adoção?

Isso não deveria ter influência no processo de adoção porque, se for assim, seria necessário começar a investigar como é que o adotante gosta de ter relação sexual. Imagina! Você vai entrar na fantasia de cada um?

6 – O Estatuto prevê que as escolas de ensino fundamental e médio tenham como disciplina obrigatória “Educação para a família”. Qual sua opinião sobre essa proposta?

Essa proposta é perigosa. Se nós estamos no Estado laico, não é possível impor às famílias uma determinada religião ou facção religiosa que vai atender apenas algumas famílias em particular, as evangélicas e católicas. É preciso definir o que é “educação para a família”. Se, por exemplo, a matéria incluir educação religiosa, é perigoso. Lembra a volta dos militares e da “educação, moral e cívica”. A educação para a família tem de ser feita na própria família.

7 – Outra proposta apresentada junto com o Estatuto da Família é a internação compulsória de dependentes químicos. De acordo com o texto, o usuário de drogas ilícitas deverá ser internado quando vagar pelas ruas ou a pedido da família. Hoje, a legislação prevê a internação involuntária, quando pedida por familiares, e a compulsória, quando determinada pela Justiça. Essa medida pode ser eficaz no combate às drogas?

Essa talvez seja a única proposta que faça mais sentido e que não tenha efeito moral. Se alguém está totalmente incapaz de resolver sobre sua vida pelo uso de drogas, se não tem mais a sua via interna lúcida, talvez aí seja necessária a intervenção externa do Estado.

8 – De acordo com dados da OMS, a cada ano, são feitos 22 milhões de abortos em condições inseguras, levando à morte cerca de 47 mil mulheres. Em 2014, foram relatados diversos casos de mulheres brasileiras que morreram após se submeterem ao procedimento em clínicas clandestinas. Na sua opinião, as condições de aborto devem ser ampliadas?

O aborto não recebe o tratamento adequado no país. É tratado com muito moralismo e hipocrisia. Tanto é que, nas eleições, ninguém tem coragem de falar disso porque a maioria dos eleitores é levada a achar que isso é errado. Na verdade, por não haver discussão, milhares de mulheres morrem depois de realizar abortos em clínicas clandestinas. Querendo ou não, as mulheres que querem fazer aborto, fazem o procedimento em clínicas irregulares e acabam sofrendo muito por isso. Se a lei permite o aborto em caso de estupro, por que não fazer em outras situações? Eu não vejo coerência nesse raciocínio.

9 – Na campanha presidencial, foi debatida a descriminalização do uso de algumas drogas, como a maconha. No ano passado, a ONU sugeriu essa medida para descongestionar prisões e facilitar a reabilitação de dependentes químicos. No Uruguai, já foi legalizada a compra, a venda e o cultivo de maconha. Na sua avaliação, esse assunto deveria ser colocado em pauta pelo Congresso Nacional nessa legislatura? A sociedade brasileira está preparada para debater esse tema?

Já passou da hora de debater isso. Essa discussão é muito saudável até porque isso poderia inibir o tráfico. Eu, particularmente, acho que não deve haver essa barreira para a descriminalização. Poderia haver um maior controle do tráfico. O que é mais perverso não é nem a droga, é a exploração do uso pelo tráfico.

10 – Outro assunto abordado nas eleições foi a proposta de redução de maioridade penal. Alguns candidatos foram contra a proposta e outros defenderam a redução em casos de crimes hediondos. Qual sua opinião sobre a redução da maioridade penal?

Sou contra. Em vez de pensar em reduzir a maioridade penal, é preciso implementar políticas públicas para adolescentes. Senão vamos reduzindo cada vez mais: dezesseis, daí a pouco é quatorze, doze. Dezoito anos é uma idade limite. Portanto, não sou favorável à redução.