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Como o TikTok está mudando as regras no mundo da cosmética - Por Karelia Vázquez

Rede social se transformou numa ferramenta fundamental à prescrição e venda de cosméticos. Mas as marcas de luxo não conseguem se fazer entender em sua linguagem: irreverente, ágil e prática. Três minutos de vídeo que estão revolucionando o setor

Foram se divertir no “último canto iluminado da internet”, de acordo com a definição da escritora Jia Tolentino. Para rir de si mesmos e de meia humanidade. Quanto mais sagrada for a causa —com a honrosa exceção da mudança climática —, mais escárnio e, maior o escárnio, maior o sucesso. Na primeira metade de 2020, 315 milhões de pessoas entraram no TikTok, uma invenção tão viciante que, de acordo com alguns estudos citados pela Bloomberg, os usuários entram em média até 13 vezes por dia e permanecem lá uma hora a cada vez.

Se no Instagram se destacam o brilho e o glamour, no TikTok se gabam da vida imperfeita e não editada, com vídeos fáceis de se consumir e formatos projetados para ser copiados em looping. Um ecossistema nem um pouco arrogante que se revelou de grande utilidade para exaltar artigos e rotinas de beleza, sempre que sua eficácia cumpra com as exigentes expectativas da geração Z e seus preços estejam à altura do salário mínimo interprofissional. Seu algoritmo, mais democrático, leve e aleatório do que o do Instagram, recompensa a criatividade. O TikTok coloca na sua frente coisas que nunca veria em outras redes sociais, essas cujos programas assumem que uma vez que você comprou um xampu sólido só vai querer o mesmo.

52% de seus usuários afirmam, segundo um estudo da própria rede social, que o TikTok é um bom lugar para “descobrir novos produtos”. 56% dizem que “ajuda a decidir o que comprar”. Para algumas marcas o TikTok foi um milagre que as catapultou ao sucesso da noite para o dia. Entre os artigos cujas vendas a rede social fez disparar estão a máscara Lash Sensational Sky High, da Maybelline; o peeling para acne da The Ordinary; a máscara Instant Detox, da Caudalíe, e o limpador Hydrating Facial Cleanser, da Cerave. Cosméticos não especialmente promovidos por suas casas, e só prescritos nas consultas dos dermatologistas, mas que conquistaram os rígidos skinfluencers. Assim são chamados os tiktokers que lidam com o cuidado com a pele e que têm três obsessões: bons ingredientes, eficácia e preços baixos. “Que funcionem e que possamos comprar”, proclamam. Segundo a publicação The Business of Fashion, a principal missão desses assinantes é convencer seus seguidores de que o mais caro nem sempre é o mais eficaz.

A @skincarebyhiram é uma dessas contas que faz milagres. Seu criador é Hyram Yarbro (25 anos), ex-mórmon, criado no Arizona. O The New York Times o chama de Gen Z’s skincare whisperer (o encantador do cuidado facial da geração Z). Evangeliza com seus vídeos mal produzidos e aos gritos ingredients don’t lie, bitches! (os ingredientes não mentem, vadias!). Os espetaculares crescimentos nas vendas das empresas Cerave e The Ordinary são, em parte, obra sua. Hyram assinou um contrato comercial com a Cerave, mas há meses recomendava os produtos no TikTok quando o contataram. Não tem nenhum acordo com a The Ordinary.

Ele se gaba de sua honestidade e ganhou o respeito de sua audiência fazendo caras de nojo a totens da indústria como a empresa Fenty, criada por Rihanna. Dorme pouco e agora trabalha no lançamento de sua linha de cuidados com a pele, chamada Selfless by Hyram; uma marca alinhada à mudança climática e ao acesso à água potável de populações desfavorecidas. Qualquer um que tenha estudado o mercado pós-covid sabe que os membros da geração Z preferem gastar seu dinheiro com produtos associados a causas sociais, e poderá calcular a audácia desse movimento.

Alguns especialistas indicam que o TikTok só movimentou uma ampla base de operações onde ainda há poucas oportunidades reais para vender. Também houve um momento, por volta de 2008, em que o Facebook era “o canto iluminado da internet” e ninguém pretendia vender nada. Mas isso mudou. E os observadores acham que se o TikTok quer ganhar poder, influência e dinheiro terá que amadurecer, se abrir à publicidade. E se corromper. É o caminho percorrido pela Douyin, sua antecessora chinesa, que já publica vídeos de até cinco minutos (os do TikTok duram no máximo três) com mensagens sérias de estilo de vida e recomendações da polícia. Seu negócio de comércio eletrônico chega aos 26 milhões de dólares (138 milhões de reais). O TikTok não fornece números sobre seus rendimentos provenientes somente da publicidade.

Em setembro de 2020, 41% das 123 marcas top de beleza de luxo tinham conta no TikTok, contra 8% que lá estavam em 2019. Antes chegaram as empresas de grande consumo (farmácias e drogarias), quase sempre tentando dominar sua linguagem com mais vontade do que sucesso. É uma verdade estabelecida que uma vez chegando à maioridade é preciso fazer um esforço cognitivo para entender a linguagem dessa rede social. Foi um mistério até mesmo para seu fundador, Zhang Ximing (38 anos), que reconheceu ao jornal South China Morning Post que estava velho para o TikTok e que durante muito tempo se comportou como um voyeur. Nos departamentos de marketing de muitas marcas afirmam que mantêm suas contas abertas, mas sem conteúdo. Outras experimentaram versões mais curtas de seus conteúdos do Instagram. “Um erro crasso”, como diz por e-mail Pierre-Loic Assayag, CEO da Traackr, uma agência global de marketing de influencers, porque “no Instagram só o bonitinho importa e no TikTok isso é irrelevante”. Outras empresas olham e esperam. Alguns responsáveis admitem off the record que vão tateando porque “ninguém em idade de votar entende o TikTok”. “As marcas de grande consumo se dão melhor do que as de luxo no TikTok porque sua audiência, jovem e à caça de bons preços, é, por enquanto, majoritária lá”, afirma Assayag.

As empresas de beleza de luxo, com suas fantasias e seu consumo aspiracional, precisam sobreviver a esse banho de pragmatismo. “O tom do TikTok é, pelo menos por enquanto, contrário ao luxo clássico. Se outras plataformas como o Instagram tendem a promover um conteúdo superficial e muito produzido, no TikTok funciona outra coisa, vídeos reais, sem filtros, gravados como um divertimento da comodidade do sofá, de moletom e chinelos. Nesse contexto é fácil entender por que o TikTok é um território de risco ao luxo, que tradicionalmente emite mensagens meticulosamente controladas, cautelosas e produzidas profissionalmente”, diz Assayag, que baseia sua observação em números: ainda que as marcas de luxo publiquem três vezes mais nesta rede social do que as de grande consumo, são estas as bem-sucedidas e que conseguem mais interações (15,7% contra 20,8%).

A @Givenchybeauty abriu seu perfil no TikTok em novembro de 2020, e a @kenzoparfums, em meados de 2021. “Testamos com conteúdos muito visuais que tinham o produto como protagonista, mas não funcionaram. O que sabíamos do Instagram não nos serve e vamos aprendendo com o veículo em andamento”, constata Alejandra da Cunha, diretora de Comunicação e Social Media das duas empresas, pertencentes ao grupo LVMH. “Muita coisa fica pelo caminho por ser atrevida demais, outras exatamente pelo contrário”. Da Cunha reconhece que para uma marca de luxo é “um desafio” criar um conteúdo que cause riso, surpresa e seja minimamente autêntico. “É muito gratificante quando se consegue o mix perfeito”. Por fim, optou por contratar uma agência específica para gerenciar seu perfil no TikTok.

Irreverência, agilidade e senso prático são essenciais para prender a atenção de uma audiência composta em 40% por centennials, que não dedicarão mais de 15 segundos para escutar os milenares patrimônios das marcas de luxo. Na opinião de Dionne Lois Cullen, vice-presidenta da The Ordinary (outra empresa bem-sucedida no Tik­Tok), a geração nativa dessa rede social é “imune ao branded content” (conteúdos pagos pelas empresas),e só segue as recomendações de seus iguais. Qualquer prescrição que marque hierarquia e autoridade, como a de especialistas, fabricantes e adultos, será ignorada. “É preciso buscar outros caminhos”, que, indica o CEO da Traackr, passam por dar “absoluta liberdade criativa” aos que dominam a ferramenta e conhecem sua audiência: os tiktokers. “Aqui o menos importante é que o influencer esteja alinhado esteticamente com a marca”, aponta.

E por que então a beleza de luxo quer estar no TikTok? Alejandra da Cunha não tem dúvidas: “É nossa oportunidade de tentar falar na mesma língua com um consumidor mais jovem, que talvez hoje não consuma nossos produtos, mas o fará em 10 ou 15 anos”. A consultoria YPulse constata que a próxima geração de compradores, os que hoje têm entre 18 e 24 anos, passou a pandemia e seus sucessivos confinamentos fazendo desafios no TikTok e reproduzindo suas coreografias repetitivas. Uma prática gregária que cria um sentimento de urgência e universalidade, outro dos sucessos dessa rede social: a certeza de que se faz parte da tribo e que se compartilha o ritual – e o artigo – correto exatamente no momento adequado.

Fonte: EL País / Karelia Vázquez
Créditos: EL País / Karelia Vázquez