A receita de Mandela

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Nonato Guedes

“Nestes tempos de barata-voa para tantos líderes mundo afora, desorientados com a agitação e ruído que lhes chegam das ruas, não custa desengavetar alguns ensinamentos contendo a essência do saber político do maior e único estadista de grande porte ainda vivo, Nelson Mandela”. Com esse alerta, a jornalista Dorrit Harazim abre um artigo publicado no jornal “O Globo”, lembrando que os ensinamentos de Mandela são práticos, ancorados diretamente na experiência pessoal de seu formulador e sintetizados pelo americano Richard Stengel, que passou dois anos ao lado do líder do movimento antiapartheid para ajudá-lo na feitura de seu livro de memórias, “Longa Caminhada Até a Liberdade”. Mandela rascunhou as anotações quando ainda cumpria seus 27 anos de prisão.

Trata-se de uma receita em oito tópicos que, à primeira vista, como diz Dorrit, soa como uma lição de autoajuda, fácil de ser seguida, embora os líderes atarantados de hoje não pareçam equipados para absorver seus fundamentos. Mandela, na verdade, nunca se sentiu confortável em arrostar conceitos abstratos. Preferia repetir para Stengel que “problemas não são uma questão de princípio e, sim, de tática”. A tática de liderança de Mandela conseguiu derrocar o sistema do apartheid na África do Sul e instalar uma democracia não racial no país, por saber, como ninguém mais, quando vestir qual dos seus múltiplos papéis, o de combatente, mártir, negociador ou estadista. O roteiro de Mandela é descrito pela jornalista como lições de autoajuda para políticos em apuros. Na atual situação, parece um manual talhado para a presidente Dilma Rousseff.

Mandela diz ser preciso saber que coragem nada tem a ver com ausência de medo. Coragem é levar o povo a se mover para além do medo. O ator político deve assumir a liderança sem se afastar de sua base, ser leal a quem o colocou no poder, e ao se confrontar com uma decisão difícil de ser tomada ou se ver numa situação espinhosa, certificar-se de que seus aliados compreendem seus atos e suas motivações. Uma comunicação franca com as bases aumenta o tamanho do apoio que receberá, mesmo que não se obtenha concordância plena. Ensina, também, que se deve saber lidar da retaguarda, permitindo a outros convencer-se de que estão na linha de frente das decisões. “Ouça os seus comandados e não interfira nos debates cedo demais. Ao final da rodada, compartilhe suas ideias e conduza a decisão na direção desejada sem soar impositivo”, prescreve Mandela.

Recomenda mais: “Saiba tudo sobre seu adversário. Mantenha próximos seus amigos, mantenha seus rivais mais perto ainda. Adversários são menos perigosos quando mantidos sob seu radar. Lembre-se de sorrir. Aparências contam, primeiras impressões são as que duram. Nada é preto ou branco. Adote o poder do “e”, no lugar do e “isso/ou”, até porque a vida não é assim. Visto que decisões e situações já são complicadas por si, convém aprender a navegar através de contradições. Desistir também faz parte do saber liderar. Acolha a realidade e saiba quando aceitar uma derrota com elegância. Saber quando abandonar uma ideia falida é uma das decisões mais difíceis para um líder, sobretudo quando ele é o autor da ideia”. Fossem essas meras formulações sem substância ou resultado comprovado, Nelson Mandela não teria um país inteiro (mais meio mundo) em estado de vigília solidária diante da infecção pulmonar que teima em impedi-lo de completar 95 anos no próximo dia 18 de julho.

A jornalista lembra que na sexta-feira passada, a poucos quarteirões do Hospital do Coração de Pretória, onde se concentra a vigília nacional africana, centenas de sindicalistas e estudantes sul-africanos trocaram orações por palavras de ordem e foram protestar contra a visita oficial ao país do presidente americano Barack Obama. “Esperávamos mais do primeiro chefe de Estado negro dos Estados Unidos”, explicou um manifestante que reclamava da política externa “arrogante”, “egoísta” e “opressiva do atual ocupante da Casa Branca, acrescentando: “Ele nos decepcionou. Acho que também Mandela se sentiria decepcionado se estivesse acompanhando”.

Obama só encontrara Mandela uma vez, em Washington, oito anos atrás, quando ainda era um quase desconhecido senador júnior pelo Estado de Illinois. Em suas próprias palavras, sentira-se um calouro diante do homem que admira desde jovem. “Desta vez, em terra africana, teria gostado de poder se reapresentar ao ícone africano como presidente dos Estados Unidos que conseguiu se eleger duas vezes. Eleito duas vezes. Teria sido um encontro rico em simbolismo de dois homens negros que fizeram História rompendo barreiras raciais em seus países. Ambos são detentores do Prêmio Nobel da Paz, mas qualquer analogia para aí. A arrebatadora bandeira do “Yes, We Can”, que impulsionou Obama para a vitória e embalou sua imagem como líder de uma nova América, hoje soa quase constrangedora, por esvaziada. Já Mandela pode repetir à exaustão e, sem cansar ninguém, sua variante histórica do que é possível alcançar”, finaliza Dorrit Harazim.