Gilvan Freire
Guiomar Freire, 68 anos, nasceu com déficit mental. Não passava de uma criança aos cós da mãe, de quem nunca se separou, até o dia mais difícil, o da separação definitiva. Haveria de ser assim em algum tempo, que foi sempre adiado por obra e misericórdia de Deus, que quis que houvesse o maior desfrute entre duas pessoas de seu merecimento que fizeram um pacto de uma depender da outra em tudo, até mesmo no sofrimento, que parecia abalar um só coração batendo por ambas.
As siamesas ocuparam durante anos a fio o mesmo espaço: duas cadeiras próximas, duas redes vizinhas ou duas camas olhando uma para outra. O universo foi para elas o mesmo lugar. Mudassem de ambiente, se deslocavam juntas, uma refazendo os passos da outra e deixando um rastro só.
Poucas vezes no mundo houve uma combinação tão perfeita, tão sincronizada, como se fosse o ritual de troca de guarda suíça no Vaticano, onde todos os componentes se mexem alinhados ao mesmo tempo, sem que ninguém perceba que são muitos, porque tudo parece um passo humano somente.
Dona Maria tem 90 anos. Teve 13 filhos mas dois morreram crianças, com menos de 1 ano de idade. Guiomar era a sua filha mais amada, se é que Dona Maria pode revelar diferença e intensidade de amor entre os filhos. Mas todos os outros sabiam dessa predileção e por que.
AINDA FALTA NASCER UM FILHO DE DONA MARIA que lhe desobedeça. Ninguém ousa, porque Dona Maria é poderosa e deusa. Mas, Guiomar, nos últimos anos, já perdendo a saúde, às vezes ensaiava: “quero não… faço não…”. Uma pirraça para não tomar remédio ou comida. Foi ela, somente ela que desobedeceu pouquíssimas vezes. E Dona Maria ria complacente como se dissesse: -“É, você pode”.
Dona Maria não foi ao hospital onde os pacientes são ajudados a morrer mais rápido. Ficou trancada no quarto, guardando a cama de sua bebê. Ali só ela e Deus sabem das confidências trocadas e dos preparativos para a única despedida. Única e final. Também não olhou para Guiomar no caixão. Certamente quis guardar lembranças suportáveis.
Seu Ciro, o pai, de 91 anos, consolou com aquilo que estava no pacto não escrito entre os protetores: – “Nosso maior compromisso está cumprido, não morrer antes dela e deixá-la”. E Dona Maria com o corpo da filha ausente, chorando, desabafou o indecifrável, o enigmático: – “Vou sentir muita saudade dela”. Ninguém saberá a intensidade e o peso dessa saudade.
Mas Dona Maria sabe que criou seus filhos para viverem felizes com ela. E em paz. Babá, como Guiomar era chamada, nem precisou se preocupar com isso, mas mesmo assim perguntou, no hospital – “mãe vem”? É, todos nós iremos um dia, novamente, para bem perto de Babá. Deus nos fará, na hora certa, mais esse enorme bem. E se cumprirão outros pactos não escritos.