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VOCÊ JÁ PROVOU VINHO DE CAJU? Prédio no centro histórico de JP esconde história de ascensão e declínio da iguaria

Quem passar no Centro Histórico pessoense pode ver escrito na fachada do prédio 208 da Rua da Areia os dizeres: Fábrica de Vinho Tito Silva. A fachada entrega uma história interessante, que talvez seja pouco lembrada pelos pessoenses.

A Fábrica de Vinho Tito Silva e Cia, fundada em 1892, foi a mais antiga e por quase cem anos a maior produtora de vinho de caju, uma iguaria que foi muito popular no Nordeste e alcançou o paladar de pessoas de outras regiões e até de outros países.

A fábrica, que leva o nome do fundador, Tito Henrique da Silva, começou com produção modesta, totalmente caseira, operada pelas mãos de sua esposa, Cilu Santos, e pelos filhos. Tito, um tipógrafo areiense e que fez carreira em diversos jornais de Campina Grande, veio para a capital (até então Parahyba) para compor o corpo do jornal A União, fundado no mesmo ano de 1892, e do qual foi primeiro diretor. Tito, ao mesmo tempo que editava este que é o jornal mais antigo do estado, paralelamente comandava a fábrica de fermentados.

Além de editor e empresário, Tito também lecionou latim no Lyceu Paraibano, cadeira na qual foi substituído por Augusto dos Anjos, de quem era amigo

Ascenção

Apesar do início modesto, a qualidade da bebida alcançou reconhecimento nacional e internacional, como ficava estampado nos rótulos das bebidas, com prêmios em Turim, Bruxelas e no Rio de Janeiro.

O sucesso do vinho Tito Silva cresceu, exportando para fora do nordeste e para outros países, como Estados Unidos e Alemanha. Com o aumento da demanda, a produção teve de acompanhar o ritmo: o espaço da fábrica foi ampliado, ocupando outro lote do quarteirão; a fabricação foi aos poucos deixando de ser caseira, até na década de 40 se tornar totalmente mecanizada, com a compra de equipamentos dos Estados Unidos e Inglaterra. Essa época foi o ápice da fábrica, consumindo diariamente de 20 a 30 toneladas de caju. Matéria-prima havia à disposição, ali nos cajueiros que cresciam aos montes nas regiões próximas, principalmente às margens lamacentas do rio Sanhauá.

Rótulo do vinho Celeste, mostrando os prêmios recebidos. Contava também com o verso “O beijo que tu me destes tem sabor inocente, que a taça do Celeste deixa nos lábios da gente”, do poeta paraibano Américo Falcão

No entanto a produção não se resumia apenas ao caju: produzia também outros licores de frutas como jenipapo e jabuticaba, e comprava produtos de outros estados como vinagre, álcool, aguardente e genebra (um tipo de bebida de origem holandesa) trazendo diversidade para o comércio pessoense.

Declínio

De sua mesa no escritório, “sr. Raul” sorri para a foto, tirada na época da pesquisa do Iphan

A chegada da década de 60, porém, marcou uma mudança de ventos para a Tito Silva. Problemas de toda ordem surgiram, a começar pela escassez da matéria-prima principal: os cajueiros, antes abundantes nas regiões próximas, começaram a rarear, devido a alta demanda e uso de sua madeira por indústrias da região para fazer carvão. A empresa se viu obrigada a buscar carregamentos em outras cidades e estados, o que aumentou os custos de produção. Na mesma época, na gestão de Pedro Gondim, foi criado o Distrito Industrial, o que acabou por afastar os investimentos governamentais da região do Varadouro, que havia sido até então uma região de concentração de indústrias e hoje está em completo abandono.

Os impostos também pesaram. Segundo um boletim do Iphan (ainda como SPHAN) de 1982, o imposto sobre o vinho de caju, que chegava a 30%, somado ao imposto estadual chegava a um total de 46% tributários. Em comparação, a incidência tributária sobre o vinho de uva produzido no sudeste era de apenas 10%.

Some-se a isso o fato de que a empresa não podia aumentar o custo do produto final, por se tratar de um produto destinado a ser acessível e popular. O resultado foi que a fábrica entrou nos anos 80 com uma dívida de 2 milhões de cruzeiros com a Receita Federal.

“Saber fazer”

Funcionárias preparando a rotulagem

A direção da fábrica se viu obrigada a pedir ajuda governamental. Coincidentemente, na década de 70, o IPHAN – ainda como Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) – vinha voltando suas políticas à culturas e saberes das camadas populares. Por meio do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), comandado pelo designer pernambucano Aloísio Magalhães, produziu o “Estudo Multidisciplinar do Caju”, em que procurava compreender a importância desse fruto para a cultura nordestina e brasileira, e acabou por encontrar a Tito Silva e Cia. Por se tratar da produtora mais antiga da região, o IPHAN demonstrou interesse em intervir pela fábrica.

Em boletim publicado pelo IPHAN em 1981, intitulado “Para salvar o vinho de caju”, pergunta-se se valeria a pena que órgãos oficiais investissem para salvar a fábrica, concluindo-se que “sim, sob dois aspectos: primeiro, pelo seu caráter de Tecnologia Patrimonial, traduzindo o fazer popular; em segundo lugar, porque se ameaça desaparecer não é por um processo natural de substituição de uma técnica por outra, ou de um produto por outro, mas sim por imposição de discutíveis leis de mercado”.

Com a recusa da família em se desfazer seu patrimônio para pagar as dívidas, porém, a Tito Silva fechou as portas em 1984, ano que, por triste ironia, é o mesmo de seu tombamento. A fábrica acabou passando para as mãos do governo do estado e a ideia inicialmente era não apenas preservar o prédio, mas também todo o maquinário e o “saber fazer”, ou seja, o método de produção daquela iguaria que por quase 100 anos foi tão importante para a região Nordeste.

Cultura perdida

A fachada da fábrica, antes e depois do restauro. O prédio foi salvo; o saber, não

A ideia, porém, não foi para frente. Apenas o prédio propriamente dito foi tombado, já que a proteção de “bens imateriais” ainda não existia na época. O livro de Saberes de patrimônios culturais do país só viria a ser criado em 2002, nos quais hoje constam saberes como o ofício das Paneleiras de Goiabeiras, primeiro bem cultural registrado pelo Iphan, o Ofício das Baianas de Acarajé (2005), o Ofício dos Mestres de Capoeira (2008) e a produção Tradicional e Práticas Socioculturais Associadas à Cajuína no Piauí (2014), entre outros.

O vinho de caju e a Tito Silva poderiam ter sido pioneiras nessa área, mas ao invés disso o prédio ficou em abandono ao longo de toda a década de 90, tendo o maquinário saqueado e entrando em avançado estado de deterioração, ao ponto de desabamento da estrutura interior.

Apenas no início do novo século, em uma parceria do governo do estado com o governo espanhol o prédio da fábrica foi restaurado (assim como vários outros dos arredores da praça Antenor Navarro), virando sede da Oficina Escola, instituição com foco na formação de mão de obra capacitada em restauração. Iniciativa importante, mas que chegou tarde. Hoje, da antiga fábrica restam apenas a fachada e alguns tonéis usados na antiga produção, expostos no hall de entrada da oficina em um pequeno museu.

Para os curiosos ainda é possível saborear fermentados de caju que são produzidos principalmente no Piauí (maior produtor de caju atualmente) e no Ceará, feitos de forma artesanal e comercializados de maneira muito tímida, em salões de exposições ou em sites especializados. Nada que se compare àquele tempo áureo da fabricação em massa, produzidos às toneladas e exportados para países europeus e que por quase um século foi um produto tão importante nas mesas nordestinas. Poderia ter se tornado um símbolo, mas hoje constitui uma cultura esquecida, um “saber fazer” perdido.

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Polêmica Paraíba