Desfalque

Morte de Clóvis Rossi desfalca o jornalismo crítico no país

A morte, em São Paulo, do jornalista Clóvis Rossi, que ultimamente escrevia na “Folha”, é um desfalque profundamente lamentável para a imprensa livre, democrática, pautada pela visão crítica no trato da informação e, sobretudo, na difícil arte de opinar, com conhecimento de causa, sobre os problemas que afligem as sociedades e as suas aspirações por justiça social e bem-estar. Rossi sempre foi uma referência para gerações de profissionais em busca de luzes sobre como direcionar seu comportamento em meio aos interesses das empresas jornalísticas e mais ainda sobre como conciliar o encaixe nessa linha com a identidade ou aproximação da verdade buscada pelo público leitor mais exigente. No geral, Rossi saiu-se bem no difícil mister, ressalvadas restrições pontuais de quem se sentiu alvejado pela sua postura implacável.

A experiência que ele aprofundou foi bebida em escolas como a Cásper Líbero e em cursos de aperfeiçoamento a que se submeteu em universidades exponenciais ligadas ao universo da informação, passando pela incursão nas redações de pelo menos três grandes jornais do país – “Folha de São Paulo”, “Jornal do Brasil” e “O Estado de São Paulo”. Em pouco mais de meio século, esses veículos modelaram corações e mentes na sociedade brasileira, pela pluralidade que adotaram na circulação de notícias, comentários e ideias, exaurindo até o limite do possível o rito democrático e, às vezes, desafiando o que era tido como supostamente permitido. Rossi é da geração que se credenciou na resistência ao arbítrio, sem nunca fazer praça de combatente.

Há inúmeras reportagens de sua lavra que foram produzidas a respeito das fases de transição do autoritarismo para a democracia em diferentes países do continente, o que revela uma preocupação inata de Clóvis Rossi com o enigma dos sistemas políticos em vigor e, de forma aprofundada ou aprimorada, sobre as contradições com que se debatem esses sistemas – contradições que, em última análise, emprestam a tonalidade para a sobrevivência ou não dos regimes democráticos. Esse interesse manifesto deu-lhe régua e compasso para o aprendizado que desenvolveu sobre a gênesis das ditaduras e a índole das democracias – e ele soube administrar com competência, habilidade e preciosismo, o relato tanto quanto possível isento das especificidades de cada sistema. Não perdeu o senso crítico nem mesmo quando, compulsoriamente, tinha que apontar ou escancarar os desvios erigidos nos sistemas democráticos. Era esta a sua forma de colaborar, do lado de fora, com os que estavam dentro do poder, alertando-os para distorções que maculavam o sentido da liberdade.

Os leitores de Clóvis Rossi acostumaram-se a ler nos seus textos – fossem analíticos ou informativos os sinais de uma espécie de bússola a orientar os jejunos em política para que pudessem decifrar os embates intestinos travados no interior dos aparelhos de governos entre agrupamentos mais liberais ou progressistas e segmentos assumidamente reacionároos e radicais, em alguns casos expoentes de linhas duras que foram pródigas, sobretudo, nas ditaduras militares que vicejaram no Cone Sul, o Brasil incluído, a um preço bastante elevado para as tradições democráticas que se intentava disseminar ou fazer prosperar. Evidente que ele não foi o único nesse desideratum. A própria “Folha” tem se constituído, ao longo dos anos, em estuário de manifestações tanto quanto possíveis livres, escoimadas de censura ou de restrições de alguma espécie, abrindo um arco que não contemplou apenas profissionais de imprensa mas as vozes oriundas da sociedade, em diversificadas extrações.

A imprensa sente-se diminuída, enfraquecida, empobrecida, sempre que morre um combatente pela democracia, pela liberdade. Esse sentimento de orfandade é da natureza das coisas e do próprio mister da militância política – ainda que não partidária – em que muitas vezes se converte ou se confunde a militância jornalística, naquelas ocasiões em que o profissional da notícia é convocado a se alistar nas causas nobres, não por estrito dever de ofício, mas pelo dever social que lhe é inerente como integrante de sociedades ou agrupamentos que estão e estarão em constante luta contra as recaídas totalitárias, de direita ou de esquerda, em prejuízo do sagrado instituto da liberdade. A Clóvis Rossi, a homenagem sentida e o agradecimento penhorado por tudo o que fez pelas causas que tocam fundo a sensibilidade dos brasileiros e brasileiras.

Fonte: Os Guedes
Créditos: Os Guedes