Retrocesso

TESOURA E RETROCESSO: Brasil volta 50 anos no tempo e expõe ignorância e preconceito na invasão a Bienal do Livro no RJ - Por Francisco Airton

Mas afinal, o que está acontecendo com o Brasil? Intervenção na Bienal do Rio de Janeiro, pelo município? Marcelo Crivella, prefeito da cidade achou por bem interferir no evento que está sendo realizado no Riocentro, com a justificativa de identificar e lacrar livros considerados impróprios segundo seus próprios conceitos.

Mas afinal, o que está acontecendo com o Brasil? Intervenção na Bienal do Rio de Janeiro, pelo município? Marcelo Crivella, prefeito da cidade achou por bem interferir no evento que está sendo realizado no Riocentro, com a justificativa de identificar e lacrar livros considerados impróprios segundo seus próprios conceitos. A operação, que aconteceu após Crivella mandar recolher HQ com beijo entre dois homens, durou até as 14h e não apreendeu nenhuma obra! Não restam dúvidas de que o país passa por tempos tenebrosos, inquisidores e que retrocede, em mais de 50 anos no tempo!

É mais um episódio constrangedor que envolve o país num disparate que reflete atraso e ignorância de órgãos e seus representantes levando uma imagem cada vez mais negativa do Brasil ao resto do mundo! Para entender melhor o que ocorreu, uma HQ publicada em 2010 se tornou o centro da polêmica. Vingadores: A Cruzada das Crianças, escrita por Allan Heinberg tem como personagens centrais o casal abertamente homossexual Wiccano e Hulkling, que aparece abraçado e dividindo a mesma cama em algumas páginas. Visitantes divulgaram fotos do quadrinho na Bienal e o vereador Alexandre Isquierdo (DEM) fez um grande discurso de repúdio à Câmara Municipal do Rio e Crivella determinou o “recolhimento” da edição.

Mas a retrógrada atitude de Crivella foi um tiro que acabou saindo pela culatra, frustrando os censores que esperavam promover um espetáculo grotesco, típico das administrações atrasadas. Diferente dos conhecidos “anos de chumbo”, a população já não aceita mais tanta imposição e a existência de órgãos repressores em pleno século XXI e tratou imediatamente de desmontar a investida comprando todas as revistas expostas nas lojas! Isso nos alenta e dá esperanças de que nem tudo está perdido. Nos anos 50 já se discutia o tema e essa não seria a primeira vez que uma revista em quadrinhos abordaria a questão da homossexualidade. Desde a muito que super-heróis são nos apresentados com suas opções sexuais respeitadas sem que, no entanto, isso possa ter influenciado na formação das crianças em nenhum momento.

Desde sua concepção na década de 1960 por Stan Lee e Jack Kirby, os X-Men sempre foram uma metáfora para a forma como minorias são tratadas por uma sociedade contaminada por preconceito e medo do desconhecido. Portanto, não foi surpresa que o primeiro super-herói abertamente gay das HQs norte-americanas aparecesse no título. Apresentado como integrante da Tropa Alfa, uma equipe mutante canadense, o herói foi concebido como homossexual desde o início de acordo com seu cocriador John Byrne, em uma história que debatia os tabus da AIDS. Em 2012, o personagem também protagonizou o primeiro casamento gay da Marvel Comics, uma celebração que reuniu grande parte do elenco mutante e a família de seu noivo humano Kyle Jinadu. E os exemplos não param por aqui. Poderíamos seguir citando muitos outros heróis como Apolo e Meia Noite, que embora sejam retratados como um casal desde sua primeira aparição, o par trocou alianças em 2002, na revista The Authority. Escrita por Mark Millar (Guerra Civil), esse se tornou o primeiro casamento LGBTQ+ em um quadrinho mainstream, assim como a bissexualidade da Mulher-Maravilha, por exemplo.

A Bienal abriu as portas na sexta-feira, dia (6) com a ameaça de censura por parte da prefeitura, e, em menos de 40 minutos, as edições de A Cruzada das Crianças esgotaram nas lojas. Segundo a assessoria do evento, nenhuma cópia do quadrinho foi lacrada, já que tal procedimento só é feito quando há conteúdo pornográfico, o que não é o caso. Hoje a situação se apresenta mais repressora, de uma vez que esses personagens atravessaram, inclusive, 21 anos de ditadura sem que houvesse qualquer tipo de intervenção.

Só a título de ilustração, para o atual governo federal, qualquer coisa que não esteja de acordo com a sua cartilha, pode ser considerado indecente! Fazer cultura por aqui, nos últimos tempos, tem sido um ofício de penosa execução. Exposições, festivais, cinema e literatura… a repressão tem se tornado uma figura de capuz e roçadeira quase que constante nos eventos!

O nosso maior problema é estarmos representados por pessoas tão atrasadas no tempo, e que não conseguem, sequer, fazer uma interpretação de texto, ou não conseguem alcançar conteúdos e ideias de relevância, simplesmente por absoluta falta de conhecimento. Em um caso anterior, na cidade de Limeira, em São Paulo, o vereador Clayton Silva (PSC) foi às redes sociais criticar um livro usado pela rede municipal de educação. Segundo o parlamentar, o exemplar aborda ideologia de gênero e, por isso, fez um requerimento à Secretaria Municipal da Educação questionando o uso e a distribuição do material, que estaria sendo usado por professores para estudos com alunos de 10 a 11 anos. “É um lixo ideológico”, escreveu.

“A Bolsa Amarela”, da escritora Lygia Bojunga, foi publicado em 1976, e é considerado um clássico da literatura infanto-juvenil. A obra narra a história de uma menina chamada Raquel, que entra em conflito com os elementos de seu mundo ao reprimir três grandes vontades: a de crescer, a de ser menino e a de ser escritora. O livro, objeto da denúncia, é uma obra autorizada pelo MEC e integrante do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) do governo federal, que recebeu diversas premiações como o troféu Hans Christian Andersen, espécie de Nobel da Literatura Infanto-Juvenil e que trata na sua essência da importância do respeito ao ser humano, uma vez que se posiciona contra o preconceito às crianças e ao machismo vigente na época.

Desta forma, não faz qualquer menção à ideologia de gênero, e a denúncia retrata apenas uma falha de interpretação de texto e da forma como o livro está sendo aplicado”, declarou o secretário municipal de Educação, André Luis De Francesco, por meio de nota. O assunto repercutiu e acabou sendo abordado por aqui em palestra realizada no mês de agosto no Simpósio de Literatura na UFPB, no mês passado. Em tempos de escuridão, apenas o fato de pensar nesse país, já está se constitui um ato de desobediência civil!

Então, de volta a censura praticada pela prefeitura do Rio à Bienal, “de acordo com a editora Galera Record, que se manifestou oficialmente em suas redes sociais, a Secretaria de Ordem Pública do Rio de Janeiro exigiu que todos os livros com conteúdo LGBTQA+ fossem lacrados e sinalizados. Uma notificação divulgada no evento diz que tais histórias “induzem a erro o leitor e seus responsáveis, faltando com o dever de lealdade a quem tem o livre direito de expressão e… “.

Mas a verdade é que personagens abertamente LGBTQ+ marcam presença nas histórias em quadrinhos desde o início da indústria, especialmente em tirinhas ou HQs independentes como a clássica Zap Comics. Com a repercussão do ato, a Bienal entrou “com pedido de mandado de segurança preventivo no Tribunal de Justiça do RJ a fim de garantir o pleno funcionamento do evento e o direito dos expositores de comercializar obras literárias sobre as mais diversas temáticas – como prevê a legislação brasileira”. Diante do turbilhão de retrocessos, não tem porque não se preocupar com o que está acontecendo no Brasil de agora, pois é inegável que estamos vivendo tempos sombrios! Mas o ato praticado por Crivella e sua tropa de choque a um evento do porte da Bienal no Rio, nos choca e nos envergonha por assim entendermos que culturalmente, já não estamos mais engatinhando, estamos retrocedendo intelectualmente!

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Francisco Airton