memória viva

O pioneirismo de Lena e Maria José no comando da imprensa paraibana - Por Nonato Guedes

"Quando fui agredido em episódio que já pertence à História, por causa de crítica que fiz a um prefeito de João Pessoa, Lena surpreendeu-me com um artigo vigoroso, desafiador, em que expunha toda a indignação e revolta pelo ato impensado cometido não propriamente contra mim, mas contra a liberdade de expressão"

Nonato Guedes

Lena Guimarães e Maria José Limeira foram pioneiras como editoras de jornais impressos na Paraíba, a primeira deixando um marco insubstituível, no dizer do próprio doutor Roberto Cavalcanti, à frente do “Correio da Paraíba”, onde soube conciliar a ética e a paixão profissionais com o advento das novas tecnologias, a estas adaptando-se com uma facilidade incrível, extraordinária mesmo, a segunda pontuando como remanescente de uma geração lírica-libertária, brilhando nas páginas do semanário “O Momento”, de Jório de Lira Machado, que incomodava figuras do poder de plantão que reinava no final dos anos 70. Distinguiram-se pela personalidade forte, pela combatividade na denúncia das injustiças sociais e até pelo engajamento político – não necessariamente partidário – em quadras decisivas da história paraibana contemporânea.

Lena, que está partindo agora, forjou-se no cadinho das pulsações de esquerda que agitaram Cajazeiras, a cidade que ensinou a Paraíba a ler, em desafio ostensivo aos esbirros da ditadura militar, na sua fase mais aguda, que beirava as trevas e o terror. Fomos colegas de militância juvenil na terra do Padre Rolim, integrando o grupo “Tribuna”, de que faziam parte, entre tantos, Gutemberg Cardoso, Josival Pereira, Luiz Alves Cabeça de Poeta, José Alves, Tarcísio Siqueira, Ubiratan di Assis, Carlos Alberto Assis Montenegro, Chagas Amaro. Fomos ligados a movimentos teatrais, musicais, ao Cineclube Vladimir Carvalho, criado por Valiomar Rolim (in memoriam), quando presidente da Associação Universitária de Cajazeiras. E fomos discípulos do clero progressista que atuava em Cajazeiras, a cidade que virou manchete internacional com a explosão de uma bomba dentro do cine-teatro Apolo XI, colocada debaixo da poltrona onde costumava sentar o então bispo dom Zacarias Rolim de Moura, que se encontrava no Recife por ocasião do infausto acontecimento que deixou vítimas fatais e fez recrudescer a atenção da repressão da ditadura sobre Cajazeiras.

Eram tempos difíceis, muito difíceis, desafiadores e perigosos. Ligamo-nos a padres italianos como Giulliano Pellegrini, Albino Donatti, Gino Cassoni, a paraibanos da gema como Gervásio Fernandes de Queiroga, mentor da Comissão de Justiça e Paz da diocese de Cajazeiras, Domingos Cleides Claudino, a figuras exponenciais da intelectualidade, a representantes de movimentos sociais. Lena, com quem fui casado e tivemos um filho, o publicitário Daniel Guimarães Guedes de Aquino, sempre se destacou pela coragem, pela firmeza de atitudes. Fomos quase testemunhas de um lamentável incidente histórico no Recife, onde participamos de um Congresso de jovens no Seminário da Arquidiocese, cuja figura central era o carismático dom Helder Câmara, que a ditadura chamava de “o bispo vermelho”. Do conclave participou um amigo comum nosso, Edval Nunes da Silva, o “Cajá”, militante de partido clandestino de esquerda e ao mesmo tempo colaborador de dom Helder Câmara. No ônibus com que eu e Lena nos dirigíamos à rodoviária para voltar a Cajazeiras, “Cajá” confessou-nos, alarmado, que estava sendo perseguido e que iria se despedir da gente no meio do caminho. Assim o fez. Cogitamos que fosse paranoia – naqueles tempos, era a moeda corrente.

No dia seguinte, em Cajazeiras, ouvi entristecido na rádio BBC de Londres, via transmissão em português, a notícia da prisão e tortura de “Cajá”. A terra do Padre Rolim, enquanto isso, estava coalhada de espiões da ditadura à procura de “comunistas”, “esquerdistas”, no rastro da detonação da bomba do Apolo XI, episódio que nunca foi investigado, a despeito do empenho do escritor Francisco Cartaxo (Frasssales) junto à Comissão da Verdade para que algum tipo de apuração ou punição ocorresse. “Cajá” sobreviveu ao suplício de Tântalo porque passou, ainda que com cicatrizes evidentes. Eu e Lena, já em João Pessoa, ligamo-nos a dom José Maria Pires, ícone a quem admirávamos profundamente e que tivemos a oportunidade de entrevistar inúmeras vezes, sempre que sua voz intimorata se impunha. Mesmo quando nos separamos, mantivemos o respeito e a afinidade na luta pelos ideais de liberdade e justiça social.

Quando fui agredido em episódio que já pertence à História, por causa de crítica que fiz a um prefeito de João Pessoa, Lena surpreendeu-me com um artigo vigoroso, desafiador, em que expunha toda a indignação e revolta pelo ato impensado cometido não propriamente contra mim, mas contra a liberdade de expressão. Havia toda essa história e, nela, indiscutíveis pontos de convergência. Não foi por acaso que ela partiu no dia em que a Assembleia Legislativa, numa iniciativa louvável do presidente Adriano Galdino, reparou omissão histórica e concedeu “in memoriam” o título de Cidadão Paraibano a dom José Maria Pires, que não lhe fora entregue no período das trevas, do regime de força que imperou e que, esperamos, tenha sido definitivamente varrido da nossa história. Este artigo é um preito de saudade e uma merecida homenagem a Lena Guimarães, figura ímpar do jornalismo paraibano e nacional, formadora de gerações, mãe de Daniel, em cuja visão crítica cada vez aposto mais.

Fonte: Os Guedes
Créditos: Os Guedes