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Eu não existo - Por Ronaldo Filho

Me chamo Inácio, tenho 33 anos e 4 filhos, sou encanador e moro desde que nasci aqui na favela Vila Baiana, no Guarujá. Minha vida não é fácil. Nunca foi! Mas eu sou feliz!

Foto: reprodução

Me chamo Inácio, tenho 33 anos e 4 filhos, sou encanador e moro desde que nasci aqui na favela Vila Baiana, no Guarujá. Minha vida não é fácil. Nunca foi! Mas eu sou feliz!

Trabalho de 10 a 12 horas por dia. Saio de casa ainda com o dia escuro e volto quando já é noite; meus filhos menores já estão dormindo. Os mais velhos estudam numa escola municipal que fica a uns 5km daqui de casa. Eles, de mochila nas costas, vão e voltam a pé todos os dias. No caminho, não raro, se deparam com cenas marcantes, que vão sendo colecionadas num álbum macabro. Desde cedo nossos olhos vão se acostumando à violência.

A refeição e o lanche servidos na escola, são tão importantes quanto aquilo que é ensinado às crianças. Ainda mais distante que a escola fica o posto de saude, mas não é comum ter médico, mais raro ainda ter os remédios que a gente precisa. Mas eu tenho fé. Eu acredito em Deus! Muitas pessoas pensam que aqui no morro só mora bandido, mas isso não é verdade! Absolutamente não é verdade! Ao contrário, aqui só mora trabalhador e pai de família. Tem bandido, sim, mas eles são uma minoria. Como eles vivem perambulando pra cima e pra baixo armados até os dentes, 24 horas por dia, a impressão que se tem é que são um exército.

Conheço pelo nome quase todos eles, alguns estudaram comigo. Eu não conseguiria explicar porque eu virei encanador e eles bandidos. São todos do PCC, uma das maiores organizações criminosas do mundo. Eles sabem que morrendo ou sendo presos a organização, de uma forma ou de outra, vai “cuidar” de suas famílias. A morte ou a prisão, sempre chegam cedo pra maioria deles. A venda de drogas, maconha, crack e cocaína, é o principal negócio do PCC. Essa droga é vendida nas “biqueiras” e nas “bocas de fumo” pelo Brasil afora e às toneladas para o mercado externo. Desde criança vejo cenas de violência. Os bandidos daqui não querem encrenca com ninguém, muito menos com a polícia. Nada que atrapalhe a venda de drogas deve ser tolerado. Assim como eu, a maioria dos moradores daqui trabalha, e trabalha muito pra não deixar as famílias passar necessidade. Tenho muita pena dos usuários de crack, dos dependentes químicos. Estes são consumidos como uma vela ao vento.

Eu tenho pavor dos bandidos daqui do morro, não pelo mal que eles podem nos fazer diretamente, mas pelo mal que nos fazem indiretamente; e esse mal é enorme. É colossal!

Na última quinta feira, 27, um desgraçado tirou a vida de um jovem policial militar, Patrick Bastos Reis, de apenas 30, que estava fazendo patrulha com outro colega aqui no morro. Ninguém sabe o motivo desse covarde assassinato.

No dia seguinte a PM deu início a uma operação pra capturar os envolvidos no bárbaro crime. A operação escudo, que conta com a participação de 600 homens. Eu moro aqui há 33 anos. Conheço todo mundo. Sei o que cada um faz. Prevendo pelo que podia acontecer comigo e com a minha família, nesse dia eu não fui trabalhar, nem meus filhos foram pra escola. Medo?

Ficamos todos em casa.

Sim, *estávamos com medo da polícia, da sua habitual e desmedida truculência.

O suspeito de ter cometido o crime já está preso. Ele se entregou com medo de ser morto pela PM ou mesmo pelo PCC. Sua crueldade prejudicou a venda de drogas. E isso, como já disse, é intolerável. Aposto que ele será morto pelos próprios colegas de facção num dos presídios dominados pelo PCC.

Até aqui 14 pessoas foram mortas na operação. Êxito ou desastre?

Eu conhecia alguns desses 14 mortos. Nem todos eram bandidos, tinha trabalhador no meio, eram pessoas do bem. Mas, quem vai acreditar em mim? Quem quer encrenca com a policia? Até a imprensa, mesmo diante dos mais dramáticos e comoventes depoimentos de testemunhas, trata tudo com reticências.

Uma das vítima, que trabalhava numa barraca na praia do Guarujá, foi brutalmente torturado e clamou pela própria vida. Outro, entregador de aplicativo, foi sumariamente fuzilado. Outra vítima podia ter sido eu. Poe que, não?

Quem se importaria?

Como num pesadelo vc vai encontrar um grande número de pessoas na sociedade, que consideram as mortes mero efeito colateral. Estas pessoas estão aplaudindo a ação da polícia. A polícia quer se vingar! A polícia se vingou! O governador festeja: 14 mortos!

A sociedade nos vira as costas, não se compadece do sofrimento da gente, de nós favelados, desvalidos, invisíveis. *Nós não existimos, somos apenas estatística, um número de CPF e de título eleitoral. *
Ninguém chora nossos mortos.

Fonte: Assessoria
Créditos: Polêmica Paraíba