COMPARTILHAMENTO DE PROVAS

Mensagens indicam parceria da Lava Jato e FBI no caso do tríplex do Guarujá; CONFIRA O CONTEÚDO

De acordo com diálogos, operação permitiu compartilhamento de provas com o FBI em 2015; pedido foi formalizado no Ministério da Justiça apenas em 2018

Novos diálogos analisados pela Agência Pública em parceria com o The Intercept Brasil revelam o interesse de agentes do FBI e do Departamento de Justiça americano (DOJ) nas investigações relativas à Operação Triplo X, que mirou a empresa de offshores Mossack Fonseca e o tríplex no Guarujá atribuído ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Segundo um diálogo travado no Telegram, a Polícia Federal ( PF ) foi procurada pelo FBI um mês antes de a operação ser deflagrada, em dezembro de 2015. A PF então requereu o aval da força-tarefa para compartilhar a investigação com os americanos. E recebeu sinal verde de Deltan Dallagnol.

“O compartilhamento pode ser policial”, disse Dallagnol, orientando o procurador Julio Noronha a não passar por um acordo de cooperação oficial nem pela autoridade central – nesse caso, o Ministério da Justiça.

Mas isso é irregular.

Um acordo bilateral (conhecido como MLAT, sigla para Mutual Legal Assistance Treaty) firmado entre Brasil e Estados Unidos afirma que todos os pedidos de cooperação devem passar pelo Ministério da Justiça, através do seu Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional (DRCI). Nos diálogos, os procuradores se referem a pedidos de cooperação como “MLATs”.

Naquela época, durante o governo Dilma Rousseff , o ministro da Justiça era Eduardo Cardozo. E, como já revelamos, o MLAT preferia não submeter seu trabalho a um governo que considerava adversário – mesmo quando a lei assim determinava.

Especialistas ouvidos pela Pública classificam como ilegal o compartilhamento de informações sensíveis ou sigilosas com autoridades americanas sem acordo de cooperação, como determina o tratado bilateral.

Mas não é essa a visão de Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato .

O diálogo foi travado apenas dois dias depois de a Lava-Jato ter requerido autorização a Sergio Moro para a realização da Operação Triplo X – assim batizada por conta da suspeita de que o tríplex 164-A do Condomínio Solaris, no Guarujá, pertencia a Lula.

O pedido feito em 15 de dezembro de 2015 não mencionava o ex-presidente, mas tratava da venda de um apartamento no Condomínio Solaris para Nayara de Lima Vaccari, filha de João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT.

Outro alvo era a publicitária Nelci Warken, acusada de operações suspeitas no apartamento 163-B, além de funcionários da empresa Mossack Fonseca, especializada em abrir offshores no Panamá.

Pessoas ligadas à Mossack Fonseca já tinham seus telefones interceptados pela PF desde o começo de novembro de 2015, e Nelci Warken tinha seu celular grampeado desde pelo menos outubro de 2015.

A investigação interceptava também ligações de funcionários da OAS e obteve quebra dos e-mails de vários alvos, incluindo a empresa de Nelci, Paulista Promoções, e-mails de seus funcionários, detalhes de CNPJs e boletos bancários.

Todas essas informações, consideradas sigilosas, constavam de um relatório feito pela delegada da PF Erika Marena em 8 de dezembro de 2015, pouco antes do pedido de compartilhamento com o FBI.

Mesmo pressionada por derrotas no Supremo e seguidas confirmações de autenticidade das mensagens, os procuradores que integraram a Lava Jato responderam à reportagem negando sua veracidade e dizendo que não mostram nada de errado.

“No vultoso esquema de corrupção descoberto pela força-tarefa Lava Jato, foram descobertas contas mantidas em nome de empresas offshores criadas ou vendidas pela Mossack Fonseca. Assim, eventuais mensagens com o conteúdo alegado pela reportagem, cuja autenticidade não se reconhece, seriam plenamente legais, legítimas e proveitosas para o interesse público, denotando denodo no exercício da função e não qualquer irregularidade”, respondeu o Ministério Público Federal do Paraná.

“O FBI não prestou qualquer tipo de assistência ou auxílio na investigação referente ao Triplex 164-A do Condomínio Solaris”, acrescentou.

A resposta completa está no final da reportagem.

O pedido da PF

Em 17 de dezembro de 2015, passados das 22 horas, Dallagnol ainda estava na sede do Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba. Através do Telegram, o procurador Julio Noronha perguntou ao chefe como deveria proceder sobre um pedido da PF para compartilhar provas com o FBI sem passar por um acordo formal.

“Naquele caso do escritório de offshores, a PF pediu (hoje, no final da tarde) para compartilharmos provas com o FBI, e o Juízo pediu para manifestarmos até amanhã na hora do almoço (para decidir antes do recesso). O caminho é uma manifestação simples e, com o deferimento do Juízo, formalizamos via autoridade central ou podemos prescindir desta e, depois da decisão judicial, já passar direto (PF para FBI). Ou devemos, antes da decisão do Juízo, fazer uma manifestação mais formal, enquadrada no MLAT?”, perguntou Noronha.

Deltan Dallagnol respondeu que não havia necessidade de um acordo formal de cooperação internacional – e que essa seria uma exigência da Justiça americana, não brasileira. “Se FBI entender desnecessário e houver decisão judicail, eu não teria receios em compartilhar…”, escreveu.

Reportagens anteriores da Pública demonstraram que Dallagnol fora advertido algumas vezes pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por ter facilitado acesso de autoridades estrangeiras a testemunhas e delatores da Lava Jato.

O procurador Vladimir Aras, diretor da secretaria de Cooperação Internacional (SCI) da PGR, questionava especialmente a colaboração extraoficial com autoridades americanas. “A questão não é de conveniência. É de legalidade, Delta . O tratado tem força de lei federal ordinária e atribui ao MJ a intermediação”, alertou Vladimir Aras.

Segundo o Manual de Cooperação Jurídica Internacional, publicado pelo Ministério da Justiça em 2019, “no Brasil, o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus) do Ministério da Justiça e Segurança Pública exerce a função de Autoridade Central para análise e tramitação dos pedidos de cooperação jurídica internacional, conforme preceitua o art. 14, IV, do Anexo I do Decreto no 9.662, de 01 de janeiro de 2019. Em matéria penal, tal função é exercida pelo DRCI para a quase totalidade dos pedidos e países”.

O manual foi publicado pelo DRCI, comandado, à época da publicação, pela delegada da PF Erika Marena – a mesma que atuou na Lava Jato e foi levada ao ministério por Sergio Moro.

O “juízo” que iria decidir sobre o compartilhamento da investigação, de maneira rápida e antes do recesso de fim de ano, era o juiz Sergio Moro, então titular da 13ª Vara Federal de Curitiba. Naquele ano, o recesso no Judiciário durou até 20 de janeiro. No primeiro dia de trabalho, 21 de janeiro de 2016, às 9h48 da manhã, Moro autorizou a Operação Triplo X, realizada seis dias depois.

No dia 27 de janeiro de 2016, funcionários da Mossack Fonseca foram alvo da Operação Triplo X , a 22ª Fase da Operação Lava Jato, que ocorreu em São Paulo, Santo André, São Bernardo do Campo (SP) e Joaçaba (SC).

A PF cumpriu 16 mandados de busca e apreensão, incluindo os escritórios da Cooperativa Habitacional dos Bancários (Bancoop) e da Mossack Fonseca, dois mandados de condução coercitiva e seis mandados de prisão temporária.

O MPF buscava descobrir se a Mossack Fonseca abrira offshores para esconder a propriedade dos apartamentos da Bancoop – cooperativa que fora presidida por Vaccari – assumidos pela OAS em 2009 – e se o empreendimento imobiliário fora “ utilizado pela empreiteira para repassar vantagens indevidas a agentes envolvidos no esquema criminoso da Petrobras ”.

A Lava Jato não mencionou nenhuma vez, mas o alvo era Lula .

Na coletiva de imprensa, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima afirmou que “todos os apartamentos” do Condomínio Solaris eram alvos da investigação sobre esquema de offshores criadas, segundo ele, para envio de remessas de propinas da Petrobras ao exterior.

Questionado por jornalistas se Lula era alvo, disse: “Nós investigamos fatos. Se houve um apartamento dele, que esteja no seu nome ou que ele tenha negociado ou alguém da sua família, vamos investigar, como todo mundo. Temos indicativos do uso desses apartamentos para lavagem de dinheiro”.

Naquela operação, a PF encontrou o contrato de adesão firmado pela ex-primeira-dama Marisa Letícia com a Bancoop para adquirir o apartamento 141, depois trocado pelo 164-A, visto como uma “ bala de prata ” pelos procuradores.

Em pouco tempo, a Lava Jato apertaria o cerco ao ex-presidente Lula. Em 4 de março, ele foi alvo de condução coercitiva e, em 14 de setembro, foi denunciado pela Lava Jato por conta do tríplex no Guarujá .

o MPF alega que a reforma do tríplex era uma propina paga pela OAS ao ex-presidente por vantagens indevidas.

A defesa alega que Lula e Marisa desistiram da compra e jamais usufruíram ou foram donos do apartamento.

Lula foi condenado em primeira e segunda instâncias e recorre no Supremo Tribunal Federal ( STF ) alegando parcialidade do juiz Sergio Moro.

Por causa da condenação no caso do tríplex, ele não pôde concorrer às eleições de 2018, embora fosse favorito nas pesquisas de opinião.

“Como está a participação do FBI?”
Esse não é o único diálogo no Telegram que demonstra parceria com o FBI na investigação sobre as offshores da Mossack Fonseca e a investigação sobre o tríplex.

Na verdade, o FBI foi citado algumas vezes nos dias que antecederam a Operação Triplo X , cruciais para operacionalizar a busca e apreensão e nos quais os chats no Telegram usados pelos procuradores estavam fervilhando. Em 8 de janeiro de 2016, foi criado, inclusive, um chat específico para debater os detalhes finais, chamado “3plex”.

Em privado, no dia 2 de janeiro daquele ano, o procurador Januário Paludo escreveu a Dallagnol para reclamar de um “erro” da delegada da PF Erika Marena, que permitiu que algumas das interceptações vazassem.

“ A Erika (acredito que por esquecimento) deixou cair todas as interceptacoes telefônicas das operações no dia 23 de dezembro. Eu u achei que estava tudo no ar e renovado e nem me preocupei, pois isso era trabalho dela ( foi uma falha). Quando vazaram algumas informações no dia 27 ela me ligou apavorada”, escreveu no chat.

O temor era que o vazamento das escutas permitisse que os funcionários da Mossack Fonseca e Nelci Warken tivessem “dado no pé”. Mesmo assim, escreveu, eles já haviam interceptado mais de 20 gigas de e-mails e “outros tantos” de telefonemas.

A seguir, ele explica que Erika estava fazendo a ponte com o FBI nesta investigação. “Se cinseguirmos a ajuda do FBI para apreender as bases de dados (espero que a Erika esteja se empenhando nisso) teremos muitas offshores para examinar a regularidades. Dados preliminares indicam que 05 panamenhos constituíram mais de 30 mil offshores, muitas com possíveis beneficiários brasileiros.”

Os diálogos foram mantidos com a grafia original, como entregues por uma fonte ao The Intercept .

A delegada Erika Marena, que mantinha relacionamento com o FBI segundo o diálogo, foi posteriormente alçada ao cargo de diretora do DRCI  no período em que Moro foi ministro, que, como a Pública já mostrou, ampliou o acesso do FBI à PF durante sua administração.

Fonte: IG
Créditos: IG