polêmica

Caso Daniel força reflexão, e futebol age contra jogador "todo-poderoso"

Categorias de base dos clubes são o principal foco da preocupação de psicólogos

A trágica morte do meia Daniel, descoberta há exatos 20 dias, continua em investigação. Um dos elementos desvendados pela Polícia por meio de depoimento é que o jogador fazia parte de um grupo no WhatsApp em que amigos compartilhavam fotos de mulheres com quem faziam sexo. A “brincadeira” contava com o envio de imagens “no momento em que a mulher estava dormindo” e virou motivo de preocupação no mundo do futebol. Ela mostra a relação distorcida de parte dos jogadores com a realidade social.

O desenvolvimento de práticas machistas e a criação da imagem de que o jogador de futebol é “todo-poderoso” por conta de sua profissão é combatida desde cedo por alguns clubes. Com departamentos de psicologia e assistência social, atletas são acompanhados desde as categorias de base. A ideia é educar sexualmente os meninos que entram no futebol, e que, por isso, passam parte da adolescência fora de casa, inseridos em um ambiente de responsabilidade, exposição e virilidade.

Divulgação/Palmeiras

Gisele Silva (primeira mulher à esquerda) trabalha no núcleo psicossocial do Palmeiras desde o ano de 2012

“Isso está no imaginário do que a população pensa sobre o atleta: essa posição de todo-poderoso, de garanhão, de ter regras diferentes. Alguns têm isso, eu percebo. Por isso, sempre busco o diálogo. A preocupação é grande porque parte das pessoas que cercam o atleta dizem o que ele quer ouvir, principalmente pelo status. Todo mundo quer ser amigo, tirar foto e publicar nas redes sociais. A maior parte das pessoas não fala o que eles precisam ouvir. Quando isso acontece e a família, os amigos e os clubes não ajudam, facilita a criação do conceito de todo-poderoso. É preciso trazer para a realidade: antes de ser atleta, ele é cidadão, uma pessoa com responsabilidades”, diz, ao UOL Esporte, Gisele Silva, psicóloga do Palmeiras desde 2012.

O tema é tabu. Nem sempre é fácil falar sobre educação sexual em escolas ou clubes de futebol. O modo mais comum é por meio de eventos, com palestras de especialistas em meio a longas programações sobre saúde. Em alguns casos, há acompanhamento individual, como relata Gisele com base em sua experiência de seis anos no Palmeiras: “Meu objetivo é fazer uma investigação não só referente ao rendimento do jogador, mas à vida dele. E, dentro disso, temos conteúdos relativos à educação sexual: a forma como ele entende uma relação afetiva, que valor dá a isso, como é seu relacionamento amoroso, se ele tem valores e respeito ou se tem comportamentos inadequados com relação a traição, se usa preservativo, se conhece as doenças, se sabe o funcionamento do órgão sexual… Sobre tudo isso, nós só entramos em detalhes nos atendimentos individuais.”

O que Gisele Silva cita como uma investigação “não só referente ao rendimento do jogador” é mencionado por Gabriel Puopolo, psicólogo das categorias de base do São Paulo, como uma possível “distorção da auto-percepção”, que gera dificuldades no desenvolvimento da identidade e da personalidade. “No caso do futebol, isso pode se agravar pelo fato de terem de amadurecer muito precocemente. É importante que eles tenham clareza dos motivadores dessa escolha de carreira e tenham consciência que o desenvolvimento esportivo deles precisa estar associado ao desenvolvimento humano.”

Teoria é uma, prática é outra

Divulgação/CBF

Seleção brasileira sub-20, do técnico Carlos Amadeu, é laboratório para time principal ter um psicólogo na comissão técnica

Dois profissionais da psicologia esportiva ouvidos pelo UOL Esporte, e que não quiseram ter nomes ou clubes onde trabalharam revelados, dizem que “em muitos clubes não é dada importância a esse tipo de ação durante o processo de formação” e que “os profissionais sofrem para conseguir desenvolver suas atividades” porque “desempenho escolar e orientações para desenvolvimento humano vêm muito depois de resultados e títulos”.

“Nem o básico conseguimos fazer, às vezes por falta de espaço. Em clubes como o Palmeiras, isso não acontece, mas em outros, sim. Aí a gente vê porque eles vêm se destacando e os resultados estão aparecendo: uma questão está relacionada à outra, pena que ninguém enxerga ou não quer enxergar”, desabafa uma profissional com quatro anos de atuação em um time da Série A do Campeonato Brasileiro.

O ambiente é supermachista. Desde cedo, eles aprendem que o fato de ser jogador os torna mais atraentes e não é preciso respeitar ninguém. Eles podem ter várias mulheres aos pés deles, ter uma namorada, mas ficar com outras. Afinal, se ele não ‘pegar’ toda mulher que aparecer, vão dizer que ele não é homem. Essa é uma questão, mas há outras pouco trabalhadas em relação a abuso sexual e homossexualidade que perpassam essa temática

Psicóloga, que pediu anonimato, fala sobre o ambiente no futebol.

Família precisa ser parceira

Segundo Gabriel Puopolo, do São Paulo, um dos segredos para evitar a armadilha do jogador todo-poderoso é o apoio familiar.

Rubens Chiri/saopaulofc.net

Gabriel Puopolo também instrui gestores, treinadores e analistas formados pela CBF

“Conseguindo alinhar o trabalho com a família do atleta, tudo acaba ficando mais fácil, e o desenvolvimento do jovem passa a ser mais integrado. Nosso sistema de trabalho implica em equilibrar o desenvolvimento de temas esportivos com a apresentação de temas sociais e da atualidade. Importante estimular o pensamento analítico e crítico dos atletas. Por isso, temas como relações raciais e de gênero fazem parte do nosso repertório. Consideramos que pessoas mais bem desenvolvidas, em seu aspecto mais holístico e integral, resultam em atletas mais bem preparados para as demandas do esporte de alto nível. Claro que não temos a intenção de orientar nenhuma discussão, apenas de apresentar o debate para que cada atleta tenha a oportunidade de refletir a respeito, com base em seus próprios referenciais e visões de mundo”, diz o profissional, que tem seis anos de São Paulo e três como instrutor da CBF Academy.

Se a família faltar, o clube age, como explica Gisele Silva: “Temos uma cultura cheia de tabus, que não fala muito sobre isso. Precisamos abrir espaço para dialogar. Talvez seja papel da família a educação sexual. Se os pais têm comportamentos ajustados, saudáveis e que valorizam o comprometimento, isso contribui para o amadurecimento emocional positivo. Mas se eles estão longe e sob responsabilidade do clube cabe a nós abrir reflexão. No Palmeiras, começamos a trabalhar esse tema a partir de 14 anos.”

Fonte: UOL
Créditos: Gabriel Carneiro