O padre é pop

Com ajuda de jogos e cultura pop, padre gamer evangeliza por meio de lives

O autodenominado "padre geek" já adianta em sua descrição no Twitch uma das perguntas que mais escuta dos internautas: "Padre joga? Joga!"

Com a pandemia impossibilitando missas e outros compromissos clericais, o padre Edson José Ribeiro Ferreira, 33, aproveitou o tempo de sobra na paróquia de Miraí, em Minas Gerais, para se dedicar mais ao seu hobby favorito: os videogames. De colarinho clerical, fone de ouvido e sotaque mineiro carregado, o padre começou a fazer transmissões ao vivo para interagir com seguidores enquanto joga títulos populares como “Among Us” e “Mario 3D World”. Com isso, notou também que poderia unir seus interesses nerds à sua vocação. As lives agora são instrumentos importantes para a evangelização.

O autodenominado “padre geek” já adianta em sua descrição no Twitch uma das perguntas que mais escuta dos internautas: “Padre joga? Joga!”

Mesmo o Brasil sendo um país predominantemente católico, não são poucas as pessoas que acreditam que a vida de um padre é pautada apenas por restrições, parada no tempo e alheia à modernidade. Por mais que existam figuras da Igreja Católica provando o contrário — como o padre “tuiteiro” Fábio de Melo —, Ribeiro conta que o sacerdócio ainda causa estranheza entre alguns seguidores.

“As pessoas têm uma imagem de que o padre é intocável ou não tem vida social. Como se nós fossemos extraterrestres”, contou o sacerdorte ao TAB. “Ser padre não significa que sua personalidade vai se anular. E nem pode, na verdade, porque se você anula sua personalidade e deixa de ser quem você é, está sendo falso com si mesmo e com os outros.”

Nintendista, sim senhor

Nascido em Palma, em Minas Gerais, Ribeiro passou a se interessar por videogames quando era criança, por meio do seu Atari e de um Master System da Sega, um dos primeiros consoles com que teve contato. “Gostava de jogar e ir com meus amigos para a locadora conferir os lançamentos, como toda criança que viveu os anos 1990”, conta.

O jogo que mais marcou sua memória de gamer é o Sonic de 8 bits para o Master System. “Acho que consigo jogar grande parte das fases só ouvindo o som”. No entanto, sua paixão se concentra mesmo nos produtos da Nintendo, como se nota por sua extensa coleção de Game Boys e sua predileção por jogos do encanador Mario.

Mesmo quando foi para o seminário, Ribeiro continuou interessado no assunto. Para ele, a vocação e o hobby nunca foram conflitantes. “Nunca deixei meus hobbies de lado, sempre fui uma pessoa que consumia videogame, HQ e anime, e continuei com isso durante o período do seminário. Claro, sempre conciliando minhas responsabilidades com o meu lazer. Não deixo de celebrar uma missa ou fazer um atendimento para poder jogar (risos)”.

Evangelizar “sem forçar a barra”

A ideia de fazer transmissões ao vivo focadas em videogames começou durante a pandemia, quando as missas presenciais na paróquia de Miraí, onde Ribeiro mora desde que se ordenou, há quatro anos, foram canceladas.

Com a necessidade de ter uma maior presença virtual, começou a interagir com criadores de conteúdos relacionados a videogames, e assim encontrou uma brecha para conversar com mais pessoas sobre religião “sem forçar a barra”, como o próprio padre explica.

Segundo Ribeiro, a imagem de um padre interagindo e jogando videogame acaba abrindo um espaço seguro para que as pessoas se sintam confortáveis em conversar. Nas transmissões, de fato, você não verá Ribeiro lendo um versículo bíblico ou rezando um Pai Nosso antes de dar um play em uma partida de “Among Us”, por exemplo. “Não tem proselitismo, não estou ali para convencer ninguém ou carregar as pessoas para a igreja. Quero levar a mensagem do Evangelho da maneira mais natural possível”, diz.

Com esse canal de comunicação mais “informal” do padre com o público, foi possível ajudar pessoas que vieram por conta própria pedir aconselhamento durante os meses mais recentes de isolamento social.

“Já aconteceu algumas vezes de receber, de madrugada, uma mensagem de alguém pedindo aconselhamento. Isso tudo acaba sendo uma porta que se abriu para que as pessoas se sentissem acolhidas para conversar e falar sobre o que está acontecendo na vida delas”, explica.

Segundo Ribeiro, muitas pessoas o procuraram para falar de problemas emocionais relacionados à pandemia, como solidão e depressão. Há também curiosos que perguntam sobre determinadas passagens da Bíblia ou que querem saber o posicionamento da Igreja Católica em determinados assuntos. O padre está aberto para todas as discussões.

O padre é pop

Como toda criança que viveu os anos 1990 e o começo dos anos 2000, Ribeiro se lembra bem do pânico moral que os videogames já causaram na sociedade — especialmente os que eram considerados mais violentos.

“As pessoas tinham uma imagem de que se você estivesse jogando um videogame de tiro, sairia atirando nas pessoas. Só que isso não acontece. A pessoa deve ter o discernimento do que vai levar daquilo que consome para a vida. Estou falando do videogame porque é algo mais interativo, mas vale para séries, novelas, filmes”, explica.

Justiça seja feita, a discussão sobre a violência em jogos foi mais ou menos superada nos anos 2000. Ainda que vez ou outra seja ressuscitada, não chega a vingar tanto. Inclusive, o padre frisa que existe uma série de títulos que trazem temas mais sérios, como “Journey”, lançado para o PlayStation 3, em 2012. “Recentemente terminei “Sea of Solitude” no Xbox, que trata de questões como bullying, relacionamento abusivo e sobre como lidar com a separação dos pais. Então tem muita coisa boa para tirar dos games”, afirma.

Além da presença nas redes sociais e das lives semanais no Twitch, o padre mantém um podcast — chamado de “Padrecast” — em que se dedica a destrinchar obras da cultura pop para encontrar e explicar conceitos comuns com o cristianismo.

Nos quatro episódios do podcast, editado por ele mesmo, Ribeiro já discutiu a simbologia cristã contida em parte da franquia Star Wars, seguido de uma discussão sobre “O Rei Leão”, os filmes “Toy Story” da Pixar e, finalmente, a saga “O Senhor dos Anéis” criada por J.R.R. Tolkien.

‘Com todo o respeito, é só um joguinho’

Nos últimos anos, parte da comunidade gamer brasileira e internacional se notabilizou por ataques preconceituosos contra minorias nas redes sociais. Do Gamergate ao recente banimento do canal Xbox Mil Grau no Twitch por comentários racistas, homofóbicos e misóginos, ficou a impressão de que o ambiente de fãs de videogame não é exatamente um lugar amistoso.

Ribeiro diz estar ciente dessa questão, e afirma que existe uma comunidade cada vez maior que busca tornar o ambiente menos hostil para novos jogadores. “Tem umas coisas que acontecem nesse meio que, confesso, não dá para entender de onde vêm. Porque, com todo o respeito, é só um joguinho. É para ser divertido, não para gerar preconceito e ódio.”

A interação violenta nesses ambientes é tão recorrente que até o padre já foi atacado algumas vezes por anônimos debochando da sua profissão ou questionando sua fé. Ribeiro diz que esses comentários não o abalam, visto que os 10 anos de seminário o prepararam para receber qualquer tipo de comentário.

“Psicologicamente, a gente está preparado para lidar com isso. Agora, a pessoa que simplesmente quer jogar e fazer parte de uma comunidade, que nunca sofreu algum tipo de ataque de cunho racial ou machista ou algum outro tipo de preconceito, por exemplo, não tem essa estrutura”, afirma.

‘Não é comunismo, é cristianismo’

Ribeiro também tem observado a crescente onda de jovens simpatizantes da extrema-direita que se consideram “radtrad”, uma corrente católica tradicionalista que rejeita a modernização da Igreja promovida pelo Concílio Vaticano II, convocado em 1962. Em uma mistura macarrônica tipicamente brasileira, os preceitos do tradicionalismo radical acabaram chegando até um grupo de adeptos mais jovens, ligados à comunidade gamer. Você já deve ter visto esse pessoal, que vez ou outra aparece escrevendo “Deus Vult!” em alguma rede social.

Ribeiro é sucinto sobre o tradicionalismo radical. “Essa vertente não faz sentido porque é totalmente anacrônica. É uma realidade de séculos atrás, que não se encaixa mais no mundo de hoje. Nem a própria Igreja pensa mais dessa forma. (…) Isso faz parte de um movimento global atrelado à tendência de ver pessoas pedindo volta de regime militar, volta de monarquia, volta de coisas que elas nem sabem direito como funcionam.”

Não é só o apreço pelos games que causa surpresa nas pessoas quando encontram as redes sociais de Ribeiro, mas também suas opiniões sobre assuntos do momento, especialmente sobre política. O padre mineiro diz que a estranheza vem da polarização que tomou conta não só do debate público brasileiro, mas também em outros países. Para ele, é óbvio e natural defender posicionamentos que promovem a dignidade humana.

Foi o interesse pelas causas sociais, inclusive, que o atraíram para o sacerdócio ainda jovem. O processo aconteceu forma gradativa, no final da adolescência, quando o mineiro passou a ser envolver com causas sociais — várias delas apoiadas pela Igreja. “Muitos ideais que tinha eram parecidos com os ideias da Igreja, apesar das pessoas terem essa imagem ultraconservadora dela”, conta. Aos poucos, Ribeiro foi ficando cada vez mais ativo na comunidade e percebeu que seu envolvimento com as causas não podiam mais se separar da sua vida. “Eu queria que as pessoas com a mesma idade que eu tivessem a mesma experiência transformadora que tive, de comprometimento com a vida do outro. Daí nasceu esse desejo”.

O posicionamento de Ribeiro — de defesa à dignidade humana e aos direitos humanos — já lhe rendeu comentários em que o sacerdote é chamado de comunista. Para o padre, a polarização política impede que as pessoas enxerguem que o posicionamento dele não está fora de sintonia com a própria Igreja Católica. “Vira essa coisa de ‘ah, o padre falou que a gente tem de ajudar os pobres, então o padre é comunista’, mas isso não é comunismo e sim cristianismo. É amar o próximo”, afirma.

 

Fonte: Polêmica Paraíba
Créditos: Universa