Ditadura

A “anistia de Figueiredo” mobilizou a sociedade há quase meio século; paraibano Ernani Sátyro teve papel decisivo - Por Nonato Guedes

A “anistia de Figueiredo” mobilizou a sociedade há quase meio século; paraibano Ernani Sátyro teve papel decisivo - Por Nonato Guedes
O Brasil viveu um momento histórico em 28 de agosto de 1979, quando o então presidente da República João Baptista Figueiredo assinou a Lei da Anistia, concedendo o perdão aos perseguidos políticos que a ditadura militar chamava de subversivos e, dessa forma, abriu caminho para a redemocratização do país. Foram anistiados tanto os que haviam pegado em armas contra o regime quanto os que simplesmente haviam feito críticas públicas aos militares. Graças à lei, exilados e banidos voltaram ao Brasil, clandestinos deixaram de se esconder da polícia, réus tiveram os processos nos tribunais militares anulados, presos foram libertados de presídios e delegacias. O projeto que deu origem à Lei da Anistia foi redigido pela equipe do general Figueiredo (ele próprio um filho de anistiado, o general Euclides Figueiredo, punido por participar da Revolução Constitucionalista de São Paulo em 1932). O Congresso Nacional discutiu o projeto de Figueiredo e o aprovou em apenas três semanas. Um deputado federal paraibano, Ernani Sátyro, que havia sido governador indireto na década de 70 e era fiel ao regime militar, foi relator da matéria na Câmara e teve enfrentamentos com opositores que defendiam uma anistia ampla, geral e irrestrita.

Segundo o jornalista Elio Gaspari, em seu livro “A Ditadura Acabada”, a anistia que Figueiredo mandou ao Congresso foi menor do que pedia a praça. O presidente insistira em não estendê-la a “terroristas” e cuidou para que isso ficasse expresso no projeto. Ele atendia a pressões da chamada “linha dura”, que se opunha à abertura política anunciada pelo último presidente do ciclo militar que reinou 21 anos no poder. Euclides Figueiredo (1882-1963) era coronel quando foi preso depois da Revolução de 1930 e, novamente, em 1932, por combater na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Exilou-se na Argentina até 1934, quando retornou ao país, beneficiando por uma anistia. Voltou a ser preso em 1938. Libertado, exilou-se em Portugal, regressando com a anistia de 1945. Semanas depois de João Baptista Figueiredo sancionar a Lei da Anistia em agosto de 1979, regressaram ao país Leonel Brizola, Miguel Arraes e Luís Carlos Prestes. Famílias que estiveram diante das portas de prisões para visitar seus parentes tornaram-se grupos alegres nos aeroportos, onde iam buscá-los na volta do exílio – descreveu Elio Gaspari. Em seu gabinete, no Planalto, Figueiredo apertou a mão do paraibano Abelardo Jurema, que fora ministro da Justiça de João Goulart e que, com a deposição deste, teve os direitos políticos cassados e foi exilado no Peru, onde sobreviveu vendendo charutos.

Coube a uma mulher obstinada, Therezinha de Godoy Zerbini, dar partida na mobilização política pela conquista da anistia. Em 1975 ela e outras mulheres fundaram em São Paulo o Movimento Feminino pela Anistia. Advogada, teve o cuidado de organizar o grupo dentro da absoluta legalidade. Registraram-se num cartório, reuniam-se com atas, expediam ofícios, pediam audiências e formavam núcleos estaduais. Terezinha despertava suspeitas na esquerda, sob alegação de que atuava para que os perseguidos mostrassem a cara para que fossem presos – e também na direita, com o famigerado SNI (Serviço Nacional de Informações do regime) identificando o MFPA com o Movimento Comunista Internacional. Foi uma das militantes do movimento, Mila Cauduro, quem entregou a Denise Goulart, filha do ex-presidente Jango, a faixa com a inscrição “Anistia”, que a jovem colocou sobre o caixão do pai, em dezembro de 1976, ainda conforme o relato de Gaspari. O movimento criou bases estaduais e ampliou significativamente as suas atividades, procurando manter-se longe das demais bandeiras e da própria militância política. Depois dele, surgiu outra organização, o Comitê Brasileiro pela Anistia, guarda-chuva que abrigou militantes do MDB e de organizações clandestinas, proscritas pela ditadura militar. O Comitê era presidido pelo marechal Pery Bevilacqua, de 79 anos, um adversário do sindicalismo esquerdista em 1964 e da tortura que se instalara nos anos seguintes.

Enfatiza Elio Gaspari: “Na sua expressão mais simples, a anistia parecia significar o esquecimento do passado. Era muito mais que isso. Ela redesenharia o futuro político para o país. As reformas do ex-presidente Ernesto Geisel, o fim da censura à imprensa escrita e a revogação do AI-5 seriam mudanças na estrutura do regime, mas a anistia significaria seu desfecho, devolvendo à política personagens que dela estavam banidos. Essa mudança afetaria tanto o governo quanto a oposição, abrindo espaço para velhas lideranças como Leonel Brizola e Miguel Arraes e para uma geração de jovens radicais de esquerda que viviam na clandestinidade ou no exílio. José Dirceu, líder estudantil de 1968, passara por Cuba e vivia na cidade de Cruzeiro do Oeste, no Paraná, convertido no comerciante Carlos Henrique Gouvea de Mello; o jornalista Fernando Gabeira, sequestrador do embaixador americano Charles Burke Elbrick em 1969, trabalhava como maquinista no metrô de Estocolmo. Concedida a anistia, o jogo político seria outro. Tratava-se de negociar sua calibragem, no tempo e no alcance”. Em princípio, Figueiredo não admitia que o benefício trouxesse de volta políticos como Leonel Brizola. Na Igreja, a anistia seletiva era defendida por bispos da chamada ala conservadora. Em fevereiro de 1978, quando o Comitê Brasileiro pela Anistia foi criado, tinha 30 associados. Em maio, 3 mil pessoas reuniram-se no Largo de São Francisco em São Paulo, pedindo uma anistia ampla, geral e irrestrita. Era o sinal de que o tema ganhara relevância na sociedade brasileira. Em janeiro de 1979 a Censura liberou uma das canções de Chico Buarque, que se tornara um hino de protesto. Em 1971, quando a proibiram, Chico avisara: “Apesar de você/Amanhã há de ser/outro dia...”

Por Nonato Guedes