plenário virtual

STF retoma julgamento sobre doação de sangue por homens gays

Hoje, relação sexual entre homens impede ambos de doarem por um ano. Associações apontam preconceito em parâmetros; governo diz que dados de HIV e outras infecções justificam regra

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta sexta-feira (1 º) o julgamento da constitucionalidade de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que limitam a doação de sangue por homens gays.

Até o momento, 5 dos 11 ministros já votaram em plenário físico. Esses votos continuam valendo para o julgamento em plenário virtual, motivado pela pandemia do novo coronavírus. Se quiserem, os ministros podem alterar o posicionamento até o anúncio do resultado final.

Autor da ação, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) apontou “absurdo tratamento discriminatório” por parte do poder público. O partido diz que, na prática, as normas barram “permanentemente” gays com “mínima atividade sexual”.

Nesta quinta (30), a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu que o STF rejeite a ação – ou seja, nem chegue a analisar o tema.

A Defensoria Pública da União (DPU), em contrapartida, enviou um posicionamento pedindo agilidade no julgamento diante da pandemia da Covid-19 – que reduziu o ritmo de doações e resultou na queda dos estoques de sangue no país.

Qual é a regra?

Hoje, os bancos de sangue do Brasil rejeitam doação de homens que tenham feito sexo com outros homens nos 12 meses anteriores à coleta. A regra vale, inclusive, para casais gays monogâmicos e para quem faz exames regularmente.

Doação de sangue: quem pode, quais os cuidados e quem não pode doar?

O governo justifica a regra pelo índice de maior de contaminação por HIV e hepatite, entre outras infecções transmissíveis pelo sangue, na população homossexual masculina.

O período de 12 meses seria necessário nesse contexto para evitar que infecções recentes passassem despercebidas – é a chamada “janela imunológica”, quando o corpo ainda não reagiu à infecção.

Em termos técnicos, Ministério da Saúde e Anvisa usam a definição “homens que fazem sexo com homens”. O termo inclui homens bissexuais e aqueles que não se consideram gays, mas adotam a prática sexual.

Mulheres lésbicas não são submetidas à restrição porque, de acordo com autoridades de saúde, as estatísticas não apontam o mesmo risco elevado de contágio pelo HIV e por outras infecções sexualmente transmissíveis.

No processo, a Anvisa nega que a regra exclua homossexuais ou bissexuais como “grupo”, e diz que a regra de abstinência sexual aplicada a esses grupos é apenas um pré-requisito a ser cumprido.

O Ministério da Saúde também negou tratamento discriminatório, alegando que a regra é apenas uma dentre outras restrições, com objetivo de proteger o receptor de sangue de qualquer risco durante a transfusão.

Votos anteriores

O julgamento começou em 2017, em plenário físico, com o voto do ministro relator Edson Fachin. Ele afirma que as normas geram uma “discriminação injustificada” e ofendem o princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade perante outros doadores. “Orientação sexual não contamina ninguém. O preconceito, sim.”
Também já votaram contra as normas os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux.

Já o ministro Alexandre de Moraes deu voto divergente a favor da possibilidade de homossexuais que tiveram relação no ano anterior doarem, mas para impedir que o sangue seja imediatamente usado por um receptor.

Segundo Moraes, o material deve ser guardado para testes até o momento em que se verificar que não há qualquer risco de contaminação.

“Nesses casos o material deve ser devidamente identificado, armazenado e submetido a necessários testes somente após o período da imunidade, que deve ser definido pelos órgãos competentes, no sentido de evitar qualquer possibilidade de contaminação”, disse.

Sem consenso médico

Especialistas e ativistas ouvidos pelo G1 divergem na maioria dos pontos ligados ao tema. Mesmo na comunidade médica, há quem veja as regras atuais como adequadas e quem defenda mudança nos critérios.

A presidente da Sociedade de Infectologia do Rio de Janeiro, Tânia Vergara, avalia que alguns trechos das regras atuais já se tornaram obsoletos. Mas defende que, sem um estudo técnico, ainda não seria possível retirar as restrições à doação de homossexuais por completo.

“Se você pegar todas as estatísticas no mundo, exceto na África, vai ver que a quantidade de infectados por HIV entre homens que fazem sexo com homens é maior que em qualquer outro grupo. Talvez, triar dessa forma seja economicamente melhor, porque banco de sangue é uma questão de saúde pública, de todos”, pondera.

“Ao mesmo tempo, heterossexuais também têm múltiplos parceiros. Você poderia usar isso como o único critério de exclusão, mas vai atrair o grupo com maior risco de infecção [para o pool de doadores]. Se você colocar na balança, vale a pena? Qual é o custo-benefício? Há uma tendência em se achar que tudo é discriminação, e não é.”

Entre os critérios que poderiam ser atualizados, segundo Tânia, está o prazo de 12 meses de “abstinência sexual” exigido para esses candidatos a doadores. A infectologista, que trabalha com pacientes soropositivos desde o surgimento da epidemia nos anos 1980, afirma que o avanço da triagem tornou a regra obsoleta.

Hoje, na rede pública, os testes para detecção de infecções no sangue identificar contágios bem mais recentes, ocorridos poucos dias antes do exame. Por isso, há quem defenda um prazo menor de “abstinência” para validar um doador gay.

É o caso do diretor-executivo do Hemocentro de Brasília, Alexandre Nonino, que sugere um novo prazo de seis meses. Ele diz concordar com a revisão parcial dos critérios, sem liberação completa.

Apesar disso, Nonino aponta que nos protocolos médicos, regras “conservadoras” – em amplo sentido – tendem a ser adotadas para proteger pacientes da margem de erro dos testes.

“Esses critérios que a Organização Mundial de Saúde define, ou o Brasil, muitas vezes pecam por excesso. Se for errar de alguma forma, é para ‘errar para mais’, errar pela segurança. É isso que está por trás de toda a filosofia da avaliação de um doador”, explica.

Segundo esse critério, valeria mais a pena deixar de coletar litros de sangue do “grupo de risco”, mesmo que o material estivesse apto à doação, do que correr o risco de transfundir uma bolsa de sangue contaminada.

Isso porque, de acordo com o especialista, nenhum teste dá 100% de certeza sobre a validade, ou não, daquele sangue. Por isso, os critérios prévios à doação funcionam como uma barreira adicional.

Ativistas veem preconceito

Já entre as ONGs ligadas à defesa de direitos humanos, o pedido de revisão das regras é quase universal. Para esses especialistas, os critérios atuais estigmatizam a população LGBTI e colaboram para uma visão ultrapassada sobre as infecções sexualmente transmissíveis.

A presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABLGBT), Symmy Larrat, defende uma triagem uniformizada para qualquer possível doador com vida sexual ativa.
“Na prática, eles perguntam se é homossexual. Se disser que sim, não doa. […] Existem heteros que se expõem a comportamento de risco e não são questionados. Não só a regra não é cumprida, como o preconceito se mantém. É uma grande hipocrisia”, diz Symmy.

Como alternativa para uniformizar o atendimento e reforçar a segurança da doação, ela defende maior investimento em tecnologia para a testagem do sangue efetivamente doado. A medida, diz Symmy, ajudaria a evitar o contágio por transfusão em qualquer caso – independentemente do perfil do doador.

“O tempo todo, querem nos colocar como um sangue que não serve porque somos promíscuos, promíscuas. Não é por conta da orientação sexual que seu sangue deve ser olhado de forma diferente”, afirma.

“Tudo que é posterior à doação pode e deve ser debatido. No que for anterior à doação, não pode haver essa distinção. A pergunta não deve ser ‘você é homossexual ou não’, mas sim, ‘você se expôs a comportamento de risco nos últimos três meses'”, diz.

No exterior

A realidade no exterior não permite extrair consenso. Embora países como Alemanha, Áustria, China e Dinamarca ainda proíbam gays de doar de forma vitalícia, há uma tendência de suavizar esse veto adotado ao redor do mundo após o surgimento da epidemia de Aids nos anos 1980. O levantamento foi feito pela BBC em 2017, quando o julgamento começou.

Na Noruega, Holanda, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos e França, vigora um embargo de 12 meses. Enquanto isso, na Inglaterra e na Escócia, o período de veto foi reduzido para 3 meses com base no avanço da tecnologia da detecção do vírus.

Itália, México, Espanha, Chile e Argentina foram além, e a orientação sexual do candidato não é mais levada em conta na triagem – apenas os hábitos sexuais.

A proibição era vitalícia no Brasil quando surgiu, em 1993. Em 2004, foi alterada para 12 meses após a última relação sexual.

Fonte: G1
Créditos: G1