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Se você nunca ouviu Chico César com cunho político, você ouviu errado - por Pedro Antunes

Isso não quer dizer que ele não tenha canções de escancaradas de amor. Opa se elas existem. No Spotify, inclusive, há uma playlist de nome "Romântico".

“Te peço, amor, pisa menos”, canta Chico César. Cabelos, grisalhos, presos para trás. Voz e violão sincopado (potente, forrozeado). Canta e toca na cozinha de sua casa, quarentenado, como tem feito nos últimos meses, de frente para o celular.

Era mais uma das incontáveis postagens de Chico César durante esse período de isolamento social. Quase diariamente, ele compõe e publica uma canção no Instagram. A música de dois dias atrás (cujo verso abre o texto) é a inédita “Pisadinha”, uma lindeza – mais uma para a coleção de canções do isolamento feitas por um dos artistas que mais produziu durante a pandemia do coronavírus.

Aliás, aconselho o leitor a dar olhadela pelo perfil de Chico César no Instagram. Há canções lindas, em voz e violão.

E há política ali, muita. Numa delas, de nome “Soledade (Viver É Melhor)”, por exemplo, ele canta sobre “vontade da mulesta de ir num forró, mas o restinho do juízo que ainda me resta me cutuca atrás da testa e diz pra ficar só que a soledade pode ser a companheira”.

Bonito, sofrido e consciente politicamente, certo?

Pois voltemos à “Pisadinha”, música de segunda-feira (4) e o burburinho criado a partir de um comentário.

O post é este aqui:

Uma pessoa comentou isso:

“Safra recorde em 2020. Parabéns, Chico César. Ótimas músicas. Carinhosamente te pediria para evitar as de cunho político-ideológico. Tu és muito maior que eles todos. Tu não deves nada a eles. Eles que te devem. Tuas mãos são limpas. Não as coloque no fogo por nenhum deles.”

Atenção para este trecho: “carinhosamente te pediria para evitar as de cunho político-ideológico”. O seguidor sugere que Chico não escolha lados. O que, atualmente, é impossível, certo?

Se você se cala diante dos esdrúxulos de Bolsonaro e, por exemplo, diante de quem quebra voluntariamente o isolamento social para fazer festança com gente aglomerada, você também é conivente com a barbárie que tem matado tantos diariamente.

Se você não conversa com aquele familiar que acredita em fake news que alguém leu no WhatsApp ou em algum veículo que se diz duvidosamente jornalístico, se você prefere dizer “melhor não misturar política” em vez apresentar os fatos concretos, você está permitindo que essas mentiras sigam contaminando até quem a gente ama.

Chico tem um lado. Definidíssimo e debochadamente escancarado.

Há tanto artista que prefere ficar caladinho, não é? Sem se meter em política (apesar de ela estar em todos os lugares da nossa vivência social), com medo de perder seguidores, plays, views e outros números.

Nunca foi o caso de Chico (mas vou explicar mais sobre isso a seguir). E ele respondeu ao seguidor e ao comentário em questão.

Uma resposta-manifesto-poesia.

“Por favor, todas as minhas canções são de cunho político-ideológico!! Não me peça um absurdo desse, não me peça para silenciar, não me peça para morrer calado. Não é por “eles”. É por mim, meu espírito pede isso. E está no comando. Respeite, ou saia. Não veja, não escute. Não tente controlar o vento. Não pense que a fúria da luta contra as opressões pode ser controlada. Não sou seu entretenimento, sou o fio da espada da história feito música no pescoço dos racistas. E dos neutros. Não conte comigo para niná-lo. Não vim botar você pra dormir, estou aqui para acordar os dormentes.”

A resposta, é claro, viralizou.

Fui dormir com muitas das frases desta resposta na cabeça. “Não vim botar você para dormir”, “não sou entretenimento”, “sou o fio da espada da história feito música no pescoço dos racistas” e, principalmente, “não me peça para silenciar, não me peça para morrer calado”.

Se você nunca ouviu Chico César com cunho político-ideológico, você o estava ouvindo errado.

Isso não quer dizer que ele não tenha canções de escancaradas de amor. Opa se elas existem. No Spotify, inclusive, há uma playlist de nome “Romântico”.

Mas, veja só, amar em tempos de ódio é um ato político.

Ou, como o próprio Chico César deixou claro no título do último álbum dele, lançado em 2019: “O Amor é um Ato Revolucionário”.

Chico foi preciso naquela resposta. Perigosamente afiado, mas ainda afável.

Acalentador, aliás, ele também pediu para que as pessoas parassem de atacar aquele que havia feito o comentário. Ninguém precisa de mais ódio neste mundo, afinal.

Chico César é político desde a estreia, com o potente “Aos Vivos” (1995), com a força do hit “Mama África”.

Quando cantou “respeitem meus cabelos, brancos”, em 2002, Chico não vivia uma espécie de crise de meia-idade ao pedir para que respeitássemos os cabelos brancos”. Nananinanão. Há uma vírgula ali, singela, capaz de mudar todo o sentido da canção. Respeitem meus cabelos, vírgula, brancos.

Disco a disco, um ato político seguido do outro. De “Mama África” a “Pedrada”, esse reggae combativo do disco de 2019.

E, agora, com essas canções de Instagram: ainda cruas, tão belas até nisso.

Político, sim. Sempre foi. E ainda bem.

Fonte: UOL
Créditos: UOL