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Procura de vacinas por clínicas privadas causa temor de prejuízos à rede pública

O anúncio de que as clínicas privadas de vacinação estão negociando a compra de 5 milhões de doses da vacina indiana contra a Covid-19 tem provocado acalorados debates éticos no setor da saúde brasileiro.

O anúncio de que as clínicas privadas de vacinação estão negociando a compra de 5 milhões de doses da vacina indiana contra a Covid-19 tem provocado acalorados debates éticos no setor da saúde brasileiro.

Por um lado, há um entendimento de especialistas em saúde pública de que, por se tratar de vacina ainda pouco disponível no mundo, a oferta no setor privado pode criar uma disputa com o SUS, aumentando as desigualdades e atrasando a imunização dos grupos prioritários.

Por outro lado, as clínicas privadas argumentam que o objetivo não é competir, mas, sim, complementar a oferta prevista no SUS, atendendo, por exemplo, empresas que querem oferecer a vacina a empregados que não estão hoje nos grupos prioritários previstos pelo Plano Nacional de Imunização.

Há uma movimentação de setores econômicos para que isso ocorra como forma de reativar a economia. A CNI (Confederação Nacional da Indústria) avalia bancar parte da campanha de vacinação para uma parcela de trabalhadores entre 20 e 50 anos.

Segundo Geraldo Barbosa, presidente da ABCVac (Associação Brasileira das Clínicas de Vacina), é uma falácia a alegação de que o setor privado vá concorrer com o SUS.

“A gente sempre foi complementar ao SUS, sempre colaborou com a cobertura vacinal”, disse ele à Folha nesta segunda (4), já na sala de embarque para a Índia, onde visitará a farmacêutica indiana Bharat Biotech, fabricante da vacina Covaxin.

Barbosa afirma que o objetivo é usar o capital da indústria que pode pagar a vacina aos seus empregados que não estão inicialmente nos grupos prioritários para que eles possam voltar ao trabalho.

“A gente vai ajudar muito mais do que atrapalhar, vai ajudar a diminuir a circulação do vírus. Nosso papel é ajudar o governo”, afirmou.

Especialistas em saúde pública, porém, veem na iniciativa um risco de competição.

“Hoje há uma escassez absoluta de vacina. O que for para o mercado [privado] é o que vai deixar de ir para o público. É diferente de casos em que o mercado aumenta a oferta”, analisa o advogado Daniel Wang, professor da FGV.

Para o economista Thomas Conti, professor do Insper, sem regras muito claras o setor privado pode competir com acordos e doses de vacina do sistema público, o que, além de prejudicar o combate à Covid, também acirraria a sensação de injustiça social.

Em sua opinião, isso poderia ser minimizado se as negociações do setor privado envolvessem só vacinas com as quais o governo não tem acordo ou ainda que não tenha nem vai iniciar negociação.

Segundo Barbosa, da ABCVac, o setor tomou o cuidado de não negociar com nenhuma farmacêutica que esteja comprometida com o governo brasileiro. Também não haveria conflito em relação ao volume de doses. “Por isso a gente conseguiu só 5 milhões de doses. O quantitativo está limitado para o mercado privado.”

Mas, mesmo que a vacina oferecida pelo setor privado não concorra com a oferta pública, o economista Conti acredita que assistir a pessoas jovens e/ou pouco expostas sendo vacinadas antes da lista pública, só porque têm recursos, geraria revolta.

“Uma boa resposta regulatória precisaria direcionar o setor privado para os grupos prioritários que têm mais risco ou estão mais expostos. Isso por si só diminuiria a sensação de injustiça.”

O desafio, segundo ele, é estudar restrições e incentivos que usem a máxima capacidade para mais acordos, mais doses e vacinação mais rápida, com a meta de reduzir óbitos e novas infecções.

Barbosa argumenta que o que mais forçou o setor privado a buscar alternativas foi o fato de ter logística já instalada em todo território nacional e poder trabalhar com um público-alvo que o governo hoje não pode atender. “A gente não quer dar privilégio para rico”, afirma.

Para Wang, a vacinação na rede privada só seria plausível se houvesse sobra de vacina no mercado, depois que a compra necessária para imunizar todos os grupos já estivesse garantida. “Na situação atual, não há vacina disponível. Os governos ainda estão brigando para conseguir comprar vacina.”

Além disso, os especialistas afirmam que a vacinação é uma ação de prevenção coletiva. “Vacina não é remédio. Vacinação é estratégia coletiva. Se você comprar, tomar a vacinar e todo o seu entorno não se vacinar, o vírus pode fazer uma mutação e sua vacina não servir para nada. É dinheiro jogado fora”, diz a enfermeira e epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo.

Para ela, a briga deve ser pelo acesso universal às vacinas e não pelo “eu tenho dinheiro e posso pagar para me salvar”. “Ninguém se salva sozinho se não salvar todos. Essa é a lição do vírus. Ou entendemos ou afundamos juntos”, afirmou.

Segundo Deisy Ventura, professora da USP e especialista em saúde global, não há registro de o setor privado oferecer vacina em nenhum país onde as campanhas de imunização já começaram porque a prioridade do setor público é conter a propagação da doença.

“Não é uma questão de esquerda ou direita. Qualquer governo que queira conter a propagação da Covid está correndo atrás para fechar acordos.”

Fonte: Folha de S. Paulo
Créditos: Folha de S. Paulo