novos desafios

Mãe de Miguel, Mirtes se matricula em curso de direito: 'meu filho me deu o dever de ajudar o próximo'

Ex-empregada doméstica se prepara para começar a graduação no primeiro semestre de 2021. 'Acabei escolhendo o direito porque senti na pele as injustiças e a morosidade do sistema', disse

A dor de perder o filho Miguel Otávio em junho deste ano deu forças a Mirtes Renata Santana de Souza para assumir um novo desafio: o de cursar direito a partir de 2021, no Recife, para se tornar advogada. “Me vi nessa missão. Meu filho me deu o dever de ajudar o próximo”, afirmou.

Miguel tinha 5 anos quando faleceu ao cair do 9º andar do prédio de luxo em que Mirtes trabalhava como empregada doméstica, no Cais de Santa Rita, no Centro do Recife. Segundo ela, o luto pela morte do filho trouxe a determinação para começar uma nova carreira, além da força para enfrentar preconceitos.

“Eu já estou preparada para os desafios. Pode ser que eu passe por algum preconceito, mas já estou passando por coisas piores. Nada se compara à dor que estou sentindo”, declarou.

Os planos de chegar ao ensino superior, segundo Mirtes, eram antigos. “Antes, eu pensava em fazer administração a distância, para poder ter tempo de cuidar de Miguel. Agora, com essa tragédia, acabei escolhendo o direito porque senti na pele as injustiças e a morosidade do sistema. Me vi nessa missão de cursar direito para poder ajudar outras pessoas”, disse.

Conciliar o trabalho em uma organização não-governamental no Recife com a faculdade também vai ser outro desafio na nova rotina da mãe de Miguel. “Eu vou participar de um treinamento para dar palestras, fazer oficinas. Já expliquei que vou começar a faculdade, que tenho essa necessidade de conciliar o trabalho e os estudos, e me disseram que não vai ter problema”, contou.

A graduação de Mirtes vai ser feita de forma presencial, a partir do primeiro semestre de 2021. Ao falar das expectativas com relação à vida de universitária, a tristeza dá lugar à empolgação em seu tom de voz. “Fiz a prova, passei, entreguei a documentação, fiz a matrícula. Agora só falta começar”, falou.

Além da torcida de parentes, amigos e advogados que acompanham Mirtes após a morte de Miguel, a ex-empregada doméstica também sente, no coração de mãe, o orgulho do filho pela decisão de se tornar advogada.

“Ele sempre teve orgulho de mim. Em qualquer brincadeira com os meninos da rua, em qualquer festa que eu organizava, ele dizia ‘foi a minha mamãe que fez’. Agora ele deve estar muito orgulhoso”, afirmou.

A primeira audiência do Caso Miguel foi agendada para o dia 3 de dezembro, no Recife. “Estou muito confiante”, afirmou. Além da esfera criminal, a mãe, o pai e a avó de Miguel pediram na Justiça uma indenização por danos materiais e morais, totalizando R$ 987 mil, a Sari Gaspar Corte Real, primeira-dama de Tamandaré e ex-patroa de Mirtes.

Caso Miguel

Miguel caiu do 9º andar do edifício Píer Maurício de Nassau, no bairro de Santo Antônio, no Centro do Recife, no dia 2 de junho. A queda aconteceu após a mãe dele deixá-lo com Sari Corte Real para passear com Mel, a cadela da família que a empregava.

No dia da morte de Miguel, Sari foi presa em flagrante por homicídio culposo, quando não há intenção de matar. Ela pagou uma fiança de R$ 20 mil para responder ao processo em liberdade.

Em 1º de julho, ela foi indiciada pela polícia por abandono de incapaz que resultou em morte. Esse tipo de delito é considerado “preterdoloso”, quando alguém comete um crime diferente do que planejava cometer.

Investigação policial

Segundo a polícia, a criança saiu do apartamento de Sari para procurar a mãe e foi até os elevadores do condomínio. Imagens das câmeras de segurança mostram que, por pelo menos quatro vezes, a primeira-dama de Tamandaré conseguiu convencer Miguel a sair do elevador social e de serviço.

Por meio de perícias, o Instituto de Criminalística de Pernambuco (IC) constatou que Sari Corte Real acionou a tecla do elevador que dá acesso à cobertura às 13h10, saindo do elevador em seguida. O laudo contradiz a versão dada pelo advogado de defesa de Sari.

O elevador parou no 9º andar, e a criança seguiu em direção a um corredor. Depois, parou na frente da janela da área técnica, escalou um vão e alcançou uma unidade condensadora de ar. Miguel tinha 1,10 metro e a janela, 1,20 metro. Marcas das sandálias que a criança usava atestaram que ele ficou em pé na condensadora.

Para descer de lá, Miguel pisou em um segundo equipamento do mesmo tipo e se dirigiu a um gradil que tem função estética. A criança escalou as grades e, ao chegar ao quarto “degrau”, se desequilibrou e caiu.

A perícia descartou a hipótese de que alguém estivesse com a criança no 9º andar. Para isso, foi calculado o tempo em que o garoto saiu do elevador e caiu no térreo: 58 segundos. Também não havia vestígios de outra pessoa no corredor em que a criança entrou.

Protestos e homenagens

O caso ganhou repercussão nacional, com manifestações de políticos e artistas na internet e criação de um abaixo-assinado virtual com mais de 2,5 milhões de assinaturas pedindo justiça.

No dia 12 de junho, durante um ato em frente ao prédio de onde Miguel caiu, manifestantes levaram cartazes com pedido de justiça e caminharam até a delegacia onde o caso é investigado. Eles exigiram que a ex-patroa da mãe do menino seja punida por homicídio doloso, quando há intenção de matar, e não culposo, como entendeu a polícia.

Em 9 de junho, artistas pediram justiça em um protesto em barcos no Rio Capibaribe, no Recife. Na véspera, 8 de junho, uma missa de sétimo dia foi celebrada virtualmente devido à pandemia da Covid-19.

No dia 7 de junho, outra homenagem a Miguel foi feita, mas em Tamandaré. Em 6 de junho, uma pintura com o rosto do menino foi feita na frente do prédio onde ocorreu o acidente. Em 5 de junho, um protesto reuniu centenas de pessoas em frente ao prédio onde vive a família dos ex-patrões de Mirtes, com forte participação do movimento negro.

Em julho, parentes e amigos da família de Miguel fizeram uma passeata pelo Centro do Recife. No ato, o grupo buscou pressionar o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para dar prosseguimento ao caso, oferecendo denúncia à Justiça.

Funcionárias-fantasma

No dia 1º de julho, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) entrou com uma ação civil pública contra o prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB), por improbidade administrativa. É que o gestor contratou a mãe e a avó de Miguel como servidoras públicas, pagas com dinheiro do município, embora elas trabalhassem na casa da família.

Em junho, o Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco (TCE-PE) confirmou que a mãe e a avó de Miguel eram contratadas da Prefeitura de Tamandaré. Durante a apuração do caso, foi descoberta outra funcionária-fantasma que prestava serviços particulares à família do prefeito.

Os técnicos do TCE fizeram uma visita à prefeitura de Tamandaré e constataram a contratação de Mirtes e Maria, além de Luciene Neves, que trabalha na casa de praia do prefeito. Segundo o conselheiro do TCE, Carlos Porto, isso implica em improbidade administrativa por estar sendo usado servidores com recursos públicos em trabalhos particulares.

O prefeito Sérgio Hacker afirmou, na época da morte de Miguel, em nota, que forneceu documentos ao TCE e ao Ministério Público de Pernambuco que demonstram que não houve prejuízo aos cofres públicos. Disse, ainda, que continuará contribuindo com as investigações.

Fonte: G1
Créditos: G1