é o brasil

Faço 90 feliz, mas não posso ser feliz num país que é um cemitério, diz Zuenir Ventura

Prestes a fazer 90 anos, Zuenir Ventura se contenta com o terraço de seu apartamento no Rio de Janeiro para suas caminhadas diárias. “Se tive alguma ideia, foi andando no calçadão”, diz ele, sobre seus passeios antes da pandemia.

Exercícios frequentes e alimentação saudável são os ingredientes para chegar aos cem, segundo um livro que tem em sua cabeceira. O jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras faz aniversário nesta terça-feira (1º) e se diz dividido.

Não tem do que reclamar no aspecto pessoal, está melhor agora do que na juventude, mas não pode dizer que é feliz. “Não se pode ser totalmente feliz num país que é hoje um cemitério.”

Ele acaba de lançar uma edição ampliada de “Minhas Histórias dos Outros”, pela Objetiva, no qual escreve sobre personalidades com as quais conviveu, como Manuel Bandeira, ainda na faculdade, e narra sua relação com Genésio Ferreira da Silva, a testemunha do assassinato de Chico Mendes que ele acolheu em sua casa dos 13 aos 21 anos depois de o conhecer durante a cobertura do caso, no Acre.

Em entrevista por telefone, Zuenir Ventura fala sobre a defesa da floresta hoje, a CPI da pandemia, velhice e 1968, o ano utópico ao qual ele dedicou seu já clássico “1968: O Ano que não Terminou”.

PERGUNTA – O senhor tem acompanhado a CPI da pandemia? O que tem achado?

ZUENIR VENTURA – Sim. A CPI é um retrato dos tempos de hoje. Eu vivi os tempos dourados, de Juscelino, rebeldes, os anos de chumbo e agora são os anos descarados, do cinismo e do deboche. Não por acaso está tendo uma grande audiência.

Na ditadura, você tinha a hipocrisia, e agora você tem o cinismo. Debocha-se da saúde, da vida. A CPI é o retrato desta época em que se mente tranquilamente.

É uma época muito difícil. Estamos vivendo um acúmulo de crises -ética, econômica, na saúde.

É possível ver um lado positivo deste momento?

ZV – Pessoalmente, não posso reclamar da vida. Vou fazer 90 anos feliz, sem doença, cercado de amigos, de netos, de uma família maravilhosa. Mas não se pode ser totalmente feliz num país que é hoje um cemitério.

Você abre o jornal e só tem acréscimo de morte. Aqui no Rio são mais de 50 mil cadáveres. No plano pessoal, não tenho do que reclamar, mas não posso beijar, não posso abraçar. Não vejo nada positivo, a não ser a solidariedade, as pessoas fazendo doações. Esses gestos me dão, eu não digo alegria, mas um conforto.

Não se pode dizer “ótimo, maravilha, estou salvo”. Estou perdendo amigos, pessoas conhecidas. É um momento distópico, para falar o mínimo.

Como o senhor chega aos 90 anos?

ZV – Estou dividido. Sou mais feliz na velhice do que era na juventude. Eu era muito feio, magro, pobre, inseguro, não arranjava namorada.

Todos estão deprimidos, eu também. Estou vivendo uma contradição. Estou feliz, mas ninguém pode estar completamente feliz agora. Passei por várias crises, por vários momentos difíceis, suicídio de presidente, renúncia, deposição, fui preso na ditadura -não fui torturado, mas amigos foram.

Mas estamos vivendo todas as crises num momento só. Durante a ditadura, o Chico Buarque cantava que “amanhã vai ser outro dia”, mas hoje não se sabe quando vai ser outro dia, nem se vai ser. Esse vírus é traiçoeiro. E olha que sou acusado de ser otimista pelos meus amigos. O brasileiro é um ser esperançoso. Eu espero, torço. Esperança a gente tem; é a última que morre, citando o lugar-comum.

O ministro da Economia reclama que todos querem chegar aos cem anos. A alternativa é não chegar. Para os economistas e tecnocratas, a velhice é um peso morto, como se não servíssemos para nada. Somos imprestáveis.

O problema da velhice não é a idade, é a saúde. Sem saúde, você é infeliz até aos 20 anos. Não se pode estigmatizar a velhice, depende muito do estado em que se chega. É mais fácil elogiar a primavera do que o outono, mas vejo muita beleza no pôr-do-sol. Quando se está com a vista boa, né?

O senhor cobriu extensivamente o caso Chico Mendes. Mais de 30 anos depois, como avalia a causa da defesa da floresta?

ZV – Regredimos. Um dos dramas deste governo é esse ministério [do Meio Ambiente]. Para mim, não é surpresa. Na primeira entrevista que vi com ele [Ricardo Salles], ele dizia que Chico Mendes não tinha a menor importância.

O Chico inscreveu na agenda planetária a importância da Amazônia, e morreu por ela. Mas ele [Salles] está ali porque o presidente acha que isso é uma frescura. Se ele não for punido pela Justiça, ele não vai ser pelo governo, porque ele representa a vontade do presidente.

A cada momento se descobre mais derrubada da floresta, os números se superam. A situação é péssima. Não mataram ninguém como Chico Mendes até agora, mas a situação não melhorou.

Que ideias restam de 1968?

ZV – O ano de 1968 deixou dois legados que eu exalto, o da paixão pela causa pública e a ética. O movimento foi planetário, mas a geração brasileira foi a que mais sofreu. Uma geração muito especial. Eles tinham uma certa prepotência, achavam que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. E a história não é feita com a sua vontade.

E como avalia a geração jovem de hoje?

ZV – Antes havia “a” geração; hoje cada grupo é uma geração. A geração da internet é uma coisa, a geração da favela é outra. A sociedade é muito segmentada. O jovem da favela é muito diferente em relação às dificuldades, ao estudo, ao trabalho, do jovem da zona sul. Temos uma cidade, o Rio de Janeiro, que é uma metonímia do país, em que há uma divisão social muito grande.

A distância entre as classes sociais aumentou. Não melhorou a cidade partida [título do livro de Zuenir de 1994]. E com um agravante, a milícia, que foi celebrada de início porque achavam que acabaria com a violência, com o tráfico. A milícia hoje está infiltrada em todas as instâncias do poder.

Há semelhanças entre a chacina de Vigário Geral, que deu origem ao ‘Cidade Partida’, e o massacre recente do Jacarezinho?

ZV – Quando cobri o pós-chacina de Vigário Geral, tinha esperança de ser a última. Mas tivemos mais e vai ter mais, porque a política de segurança do Rio é ultrapassada. Acham que combate às drogas tem que ser uma guerra, como o Nixon achava.

Com essa política retrógrada, de tempos em tempos vai ter chacina. A polícia entra, recolhe meia dúzia de armas, mata um monte de gente. E não existe bala perdida, ela atinge, em geral, inocentes.

O senhor faz parte da Academia Brasileira de Letras desde 2015. Há três cadeiras vazias na instituição. O senhor tem palpites para essas vagas?

ZV – Até disse isso para um candidato outro dia. Na ABL, antiguidade é posto e sou um dos mais recentes ali. Então vou primeiro conversar com a diretoria para saber o que é melhor para a academia, do que ela precisa. Já ouvi falar que ela precisa de mais um filólogo, ou de um médico. E há muitos candidatos.

Acho que a Fernanda Montenegro é um consenso. Só não vai se não quiser. Se ela estiver dividida em se candidatar. Porque as pessoas têm que se candidatar.

Os que me procuraram se decepcionaram, porque não têm que falar comigo. Vou primeiro conversar com a academia, diante dos candidatos. Mas eu não tenho candidato.

Qual sua relação com sua posição de imortal da ABL?

ZV – De fora há essa imagem de que é uma chatice, são 40 velhinhos que se reúnem toda semana para tomar chá, mas é muito divertido. É agradável e tem muito humor. Nós velhinhos temos muito humor. Estou sentindo muita falta, porque a academia fechou e não sabemos quando vai abrir.

O Ferreira Gullar, que resistiu muito à academia, era o primeiro a chegar às reuniões, e disse, antes de morrer, que o programa cultural dele era a academia.

Qual a relevância da imprensa nestes tempos de notícias falsas por todo canto?

ZV – Nesses últimos anos, a imprensa é culpada de tudo. Mas desde a época dos reis madava-se matar o emissário de más notícias. De certa maneira, nós somos esse emissário. Sempre que pode, o presidente diz que é culpa da imprensa. Todo poder tem implicância com a imprensa.

O leitor acha que a gente só publica notícia ruim. Na ditadura, diziam que só publicávamos notícia boa, e era verdade, porque tinha censura.

Certas coisas que se fazem na internet em nome do jornalismo não são jornalismo. O jornalista apura o que vai publicar, e, em muito do que está na internet, a apuração não existe. Apuração é a coisa mais importante da tarefa do repórter.

Não reivindico censura na internet, porque já vimos a censura e sabemos que não serve de nada, mas alguma regulamentação precisava ser feita contra a impunidade. A notícia falsa é uma praga.

Fonte: Notícias ao minuto
Créditos: Polêmica Paraíba