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Estudo aponta níveis de risco de surgimento de epidemia ou pandemia a partir do Brasil

Com proporções continentais e paisagens heterogêneas, o Brasil é residência para uma imensa biodiversidade de animais e vegetais e, por isso, abriga também uma variedade significativa de patógenos e parasitas – organismos capazes de causar doenças. Um estudo liderado por pesquisadoras do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e publicado na revista científica Science Advances aponta recentes aumentos nas vulnerabilidades sociais e ecológicas do país, associados aos cenários políticos e econômicos, e acende o alerta para a propensão dessa megadiversidade atuar como incubadora de possível pandemia provocada por zoonoses (doenças infecciosas de circulação animal que podem ser transmitidas para os seres humanos).

Área de queima do bioma Pantanal. A remoção da vegetação natural é um dos principais fatores que promovem surtos de zoonoses (Foto: Fabiana Lopes Rocha)

“A partir de um modelo de avaliação que identifica diferentes interações entre os elementos que investigamos, conseguimos observar mais amplamente os processos que moldam o surgimento de zoonoses em cada estado brasileiro”, aponta Gisele Winck, primeira autora do artigo e pesquisadora do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios do IOC.

Três principais componentes de risco estão em foco na avaliação: vulnerabilidade, exposição e capacidade de enfrentamento. Dentro dos grupos principais, são observadas variáveis mais específicas como a quantidade de espécies de mamíferos silvestres, perda de vegetação natural, mudanças nos padrões de uso da terra, bem-estar social, conectividade geográfica de cidades e aspectos econômicos.

Os resultados colocam em evidência o desflorestamento e a caça de animais silvestres como fatores de grande relevância para o aparecimento de novas e antigas infecções. O estudo aponta, ainda, que todo o território brasileiro está suscetível a emergências ocasionadas por zoonoses, com uma maior probabilidade em áreas sob influência da Floresta Amazônica.

Um exemplo é o Maranhão, que tem cerca de 34% do seu território coberto pela floresta tropical e é classificado como área com alto risco para surtos de zoonose. Enquanto o Ceará, estado vizinho, onde a Caatinga prevalece, apresenta baixo risco no surgimento de novas doenças.

“A Floresta Amazônica é uma região com alta diversidade de mamíferos selvagens e que vem sofrendo grande perda da cobertura florestal. Muitas espécies estão ficando sem habitat devido ao desmatamento, gerando desequilíbrio na dinâmica local”, explica Cecília Siliansky de Andreazzi, última autora do artigo e, também, pesquisadora do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios. Participam do trabalho especialistas e pesquisadores da Vice-Presidência de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC, Fiocruz Ceará, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Estadual do Ceará (UECE), Faculdade Maurício de Nassau, União Internacional para a Conservação da Natureza, Universidade de Aveiro e Universidade de Coimbra.

Risco de “transbordamento”

O contágio por infecções de origem animal acontece por meio do fenômeno conhecido como spillover, quando patógenos que circulavam restritamente em um grupo animal saltam da espécie e passam a infectar outras espécies, incluindo humanos. A expansão das atividades humanas para regiões de matas e florestas, naturalmente habitadas por animais silvestres, é um aspecto que favorece ainda mais esse cenário.

Todavia, o estudo ressalta que para uma zoonose se tornar epidêmica é necessário o alinhamento de diferentes fatores ecológicos, epidemiológicos e comportamentais, incluindo a mobilidade humana como um fator de importância. No Brasil, a dependência socioeconômica de cidades menores com capitais e grandes metrópoles aumenta o potencial epidêmico das zoonoses, uma vez que habitantes de regiões interioranas precisam realizar deslocamentos frequentes em busca de bens e serviços.

“O fluxo humano é crucial no espalhamento de zoonoses, principalmente em infecções cuja transmissão ocorre de pessoa para pessoa após o salto de espécies, como é o caso da Covid-19. A partir do momento em que esses patógenos alcançam cidades super espalhadoras, como São Paulo e Manaus, a transmissão é amplificada e exportada para diversas outras regiões”, ilustra Cecília.

A carne de caça é outra via crítica para o “transbordamento” de doenças. Em uma análise de rede, foram relacionadas espécies que são frequentemente caçadas de modo ilegal no Brasil com patógenos que potencialmente causariam danos graves à saúde pública. Como resultado, foram encontrados 63 mamíferos que interagem com 173 parasitas propícios a causar pelo menos 76 diferentes doenças.

“A infecção pode ocorrer em diversas etapas: ao adentrar a floresta, quando o caçador fica exposto a mosquitos, carrapatos e diversos outros vetores de patógenos; no ato da caça, ao sofrer um corte ou arranhão que entre em contato com fluidos animais; no preparo da carne, quando há o contato direto com vísceras, que também são comumente oferecidas como alimentos crus para cães e gatos de estimação; e no consumo final da carne, caso não seja bem armazenada ou cozida”, detalha Gisele. Como a atividade ainda é essencial para populações tradicionais que utilizam a carne de caça para subsistência, os especialistas fazem um recorte de situação no artigo e recomendam a implementação de ações pontuais de garantia da segurança sanitária nesses grupos.

“É algo que precisa ser bastante discutido e avaliado. A caça é autorizada apenas para os povos tradicionais, porém ela continua ocorrendo fora desses grupos e serve como fator de interação entre pessoas e animais silvestres reservatórios de patógenos. Infelizmente, todos acabam sendo tratados erroneamente como igual. É preciso diferenciar populações que dependem desse consumo como fonte de proteína daqueles que atuam no tráfico de animal silvestre ou caça esportiva”, lembrou Cecília.

Mapa da esquerda aponta os níveis de risco de surgimento de zoonoses nos estados brasileiros. Para efeito de comparação, mapa da direita apresenta as extensões geográficas dos biomas

Vigilância e atendimento

A principal forma de mitigar os efeitos do surgimento de uma zoonose, como aponta o estudo, é o investimento em ações do Sistema Único de Saúde (SUS). De acordo com o artigo, a contenção de zoonoses ocorrerá efetivamente com a promoção de políticas públicas de saúde que apoiem abordagens preditivas e preventivas que sigam o conceito de One Health (Saúde Única, que contempla a saúde humana, animal e ambiental). Entre as ações preconizadas, estão a implementação de sistemas de monitoramento eficazes integrados com vigilância epidemiológica de potenciais doenças zoonóticas, políticas mais amplas e inovadoras que mitiguem a degradação ambiental, fiscalização do tráfico de animais silvestres e novas abordagens para a conservação da biodiversidade.

“O que define se o surgimento de uma zoonose será um surto local, epidemia ou pandemia é como iremos lidar com a situação. Temos que pensar em como faremos um monitoramento eficiente de um país grande e diverso como o nosso”, afirma Gisele.

“A resposta do Brasil à Covid-19”

O estudo teve origem em uma carta publicada em setembro de 2020 na revista The Lancet. Na época, os autores do texto apontavam retrocessos em políticas sociais e ambientais do Brasil, que podiam contribuir para a ocorrência de infecções causadas por patógenos de origem animal. Os especialistas defendiam, ainda, a criação de um sistema integrado de vigilância de doenças silvestres.

“Após a publicação da carta, iniciamos uma reflexão mais aprofundada e detalhada sobre o potencial risco de emergências de zoonoses no Brasil. Esse artigo é fruto de muita pesquisa e discussão entre os pesquisadores desse grupo, visto que são assuntos complexos e que demandam uma busca por informação em variadas fontes”, enfatizou Gisele.

A multidisciplinaridade dos integrantes da pesquisa também foi reforçada pela pesquisadora. “Nosso grupo é composto por diferentes profissionais que atuam nas áreas de saúde pública e conservação do meio ambiente, o que possibilitou desenvolver discussões muito interessantes sobre esses temas. Muitas vezes, estamos habituados a trabalhar com colegas de áreas semelhantes e que pensam de forma parecida com a nossa. No entanto, nesse grupo, o destaque foi esse ambiente rico e diverso que possibilitou explorar novas ideias para a construção do artigo”, concluiu.

A publicação faz parte do projeto SinBiose do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Sob coordenação do pesquisador Paulo Sérgio D’Andrea, chefe substituto do Laboratório de Biologia e Parasitologia de Mamíferos Silvestres Reservatórios do IOC, a iniciativa tem como propósito produzir dados e conceitos com ênfase em projetos que abordem problemas atuais em biodiversidade e serviços ecossistêmicos.

Fonte: Fiocruz
Créditos: Polêmica Paraíba