COVID-19

Cacique da maior comunidade indígena do Brasil morre vítima de coronavírus

À primeira vista, o Parque das Tribos parece mais um bairro periférico: casas de tijolo aparente e sem água encanada, poucas ruas asfaltadas, igrejas evangélicas e falta de calçada.

À primeira vista, o Parque das Tribos parece mais um bairro periférico: casas de tijolo aparente e sem água encanada, poucas ruas asfaltadas, igrejas evangélicas e falta de calçada. Mas os rostos indígenas dos moradores contam outra história. E, nesta quinta-feira (14), eles choraram a morte da sua maior liderança, Messias Kokama, 53, vítima da Covid-19.

“Hoje, a pororoca do Solimões derrubou uma grande árvore”, discursou emocionada a amiga Vanda Witoto, 32, durante o velório, na escola municipal da comunidade, ainda em obras. “Foi um guerreiro que lutou até o último suspiro para proporcionar vida digna para seus parentes que vivem às margens dos igarapés de Manaus.”

O velório foi concorrido, pesem as restrições impostas pela epidemia. Usando máscaras com os dizeres “vidas indígenas importam”, centenas de moradores apareceram para se despedir de Kokama, encerrado dentro de um caixão de madeira envolvido em plástico. Muitos choravam. A despedida contou com danças indígenas, músicas evangélicas, pregação e orações –Kokama, cujo sobrenome de batismo é Martins Moreira, atuava como pastor da Igreja Pentecostal da Missão.

Chorando muito, um dos três filhos mal conseguiu terminar o discurso: “Apesar de minhas atitudes nem sempre serem muito boas, ele sempre conversou comigo”. Vestia cocar e portava uma tornozeleira eletrônica. O cacique é o primeiro morador do Parque das Tribos a morrer em decorrência da Covid-19, conta Witoto. Auxiliar de enfermagem, ela monitora, de forma voluntária, cerca de 50 pessoas do bairro que apresentam sintomas.

Ela diz que, apesar de sentir sintomas, Kokama resistiu a procurar ajuda médica —relato comum entre os moradores de Manaus, temerosos de contrair o vírus nos hospitais. “No domingo, ele estava com dificuldade respiratória, e os filhos deles chamaram o Samu. Quando chegou, já estava com 54% de saturação, ou seja, não conseguia respirar”, diz a amiga. Ele morreu após oito dias internado.

Amigo de Kokama e fundador do Parque das Tribos junto com ele, Sindoval Pereira Cordeiro, 57, diz que a comunidade teve início em abril de 2014, quando famílias entraram no terreno. Hoje, a estimativa é de que haja 700 famílias morando ali, de 35 povos indígenas da Amazônia. Cordeiro é do povo miranha, habitantes da calha do rio Solimões. Ele visita Manaus, onde mora uma filha —anos atrás, voltou ao interior, onde planta açaí. O repórter pergunta por que os índios vão para Manaus. Simba, como é conhecido, sorri e diz: “Muitos que se dizem indigenistas, antropólogos e outros defensores das causas sociais ficam na luta de que o índio podia viver como antigamente”.

“O índio, antigamente, escolhia o melhor lugar para viver”, diz. “Hoje, não dá mais. Ele não pode caçar pra cá, não pode pescar ali. Então ele vem onde possa viver melhor. Mesmo na favela, há muitos que estão vivendo melhor do que na reserva. Lá está pior ainda.” Em litígio, o Parque das Tribos é um dos poucos espaços indígenas de Manaus. Estima-se que vivam 30 mil indígenas na cidade, muitos em moradias precárias.

Questionada sobre como os indígenas estão enfrentando mais uma epidemia trazida pelos brancos, Witoto respondeu: “Vamos continuar lutando. Nós já enfrentamos várias epidemias, várias gripes, vários povos foram dizimados por conta delas.” “Para os povos indígenas, tudo é luta. Lutamos todos os dias, todos os anos por nossas vidas. A gente fala que são 520 anos de luta. É uma sociedade que nos renega, uma sociedade que nos torna invisíveis, nos menospreza. Esse vírus é só mais uma luta pros nossos povos, é só mais uma luta”, diz, com a voz embargada e lágrimas nos olhos.

Fonte: Folha de São Paulo
Créditos: Folha de São Paulo