José Pereira Gondim
Daqui a TRÊS dias, ou mais precisamente no dia 24 do mês em curso ocorrerá no calendário do tempo, mais um aniversário do padre Cícero Romão Batista, o patriarca do Juazeiro do Norte, seu primeiro prefeito, o homem escolhido “o cearense do século” e um “santo” para 40 milhões de romeiros simples. Nessas alturas dos acontecimentos atendendo a uma tradição que se repete a mais de um século e “de pai pra filho”, milhares de romeiros por todo o Nordeste fecharão suas residências, deixarão cidades e regiões distantes e rumarão a “Meca caririense”, a fim de reverenciar seu “santo do coração”.
São 2,5 milhões de “visitantes romeiros” todo ano, e por ocasião das diversas romarias, ou seja: 02 de fevereiro (festa das Candeias), Semana Santa, 24 de março (aniversário do padre Cícero), 20 de julho (aniversário de sua morte, que também é comemorado em cada dia 20, nos doze meses do ano), 15 de setembro (dia da padroeira), 02 de novembro (dia de finados) e 30 de novembro (dia de sua ordenação sacerdotal) “lotam” a Cidade.
Apesar dum comércio pujante, duma rede de saúde e ensino bastante avançada, onde “pontificam” duas escolas particulares de medicina, a grande vocação da cidade é voltada às romarias pontuais, através da venda de artigos religiosos, alimentação e acomodação para milhões de visitantes. A grande atividade comercial no Juazeiro gira em torno do atendimento ao “turismo religioso”, através de casas especializadas nesse ramo; grande rede de “cafés”, lanchonetes, restaurantes, além de incontáveis pousadas e hotéis, alguns de grande porte e “várias estrelas”, como o Panorama e Verde Vale.
Falar do benfeitor e primeiro prefeito da maior cidade do interior do Ceará, inexoravelmente conduz o curioso, ao final do século XIX, precisamente aos anos 1889/1892, período onde ocorreram fatos extremamente polêmicos. Recentemente, a lembrança dos eventos desse intervalo, foi trazida a público pelo jornalista e escritor Lira Neto, através do livro: “Padre Cícero – Poder, Fé e Guerra no Sertão”; relato minucioso e fartamente documentado, além da independência de um autor alheio a sectarismos e influências comezinhas.
Deixando de lado o quesito “milagre”, uma vez que o mesmo é decantado em dezenas de páginas da obra, e isso (qualquer “sucesso”) em religião é tratado como “questão de fé” torna-se necessário levar ao conhecimento do leitor, que a Igreja considerou embuste o suposto prodígio e excomungou o padre Cícero taxando-o de maldito, renegado e explorador da fé alheia, um castigo que ainda perdura, pois, conforme o provérbio de Heráclito, na tradução latina de Horácio: “dura lex, sed lexis”, a lei é dura, porém é lei. O “mecanismo” da excomunhão é uma cópia do Cherém judaico (há muito tempo fora de uso, pois o judaísmo é dinâmico), todavia, para os católicos, uma condenação dura, uma punição exemplar, dolorosa e sofrida.
Pois bem, no período que permeou a excomunhão do padre Cícero, a Igreja endureceu o quanto pode, todavia, uma observação bastante sintomática, feita por monsenhor Alexandrino a Dom Joaquim (o bispo do Ceará, na época), no distante final do século XIX, e contida na página 168, da obra de Lira Neto, “Padre Cícero”, coloca o componente pecúnia em evidência, confira:
“Devo declarar que a suspensão não produziu o efeito que Vossa Excelência esperava. Continuam as romarias em larga escala e o dinheiro que deixam é incalculável”. Na oportunidade esse Autor recorre a dois conceitos do grande corso e Imperador Francês Napoleão Bonaparte, um grande conhecedor das artes da guerra e da fraqueza de espírito do ser humano, ou seja: “Todos são sensíveis a percentuais”, ou, “Não há leis possíveis contra o dinheiro”.
Com a morte de Cícero em 20 de julho de 1934, aos 90 anos de idade e em plena vigência da excomunhão, a Igreja esperava que a devoção dos romeiros ao “padrinho” diminuísse, e para tanto apostou na ação a ser desenvolvida pelo sacerdote italiano e reitor do Convento de Brindsi, frei Pio Giannotti, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial e chegado ao Brasil no início dos anos 30. O Vaticano o designou para aqui liderar a “Santa Missão”, um artificio destinado a fortalecer o poder de Roma, evitar uma possível cisão no catolicismo através da criação da Igreja Católica Apostólica Brasileira (?), bem como neutralizar o crescimento das romarias e eliminar o prestígio do padre Cícero.
Pio Giannotti, que adotara o nome de frei Damião de Bozzano fez tanto sucesso dentro do fanatismo religioso em voga que terminou por galgar aos altares como santo, todavia, em segundo plano, pois os simpatizantes do padre Cícero jamais abandonaram o “benfeitor querido”, muito pelo contrário, aumentaram de número em progressão geométrica. A trajetória de Damião, acima comentada pode ser vista no Blog do Bob, de propriedade de Roberto Vilanova, conhecido jornalista nativo e colunista no Jornal do Brasil (1977/1988) & Jornal de Brasília (1992/1993), entre outros.
A Igreja, segundo norma criada pelo papa Gregório VII (1073-1085), “nunca errou nem jamais errará, conforme a Escritura testifica”. Convenhamos: é muita pretensão, mormente num quadro de pedofilia (incontrolável e a perder de vista), lavagem de dinheiro (recentemente 23 milhões de euros denunciados na mídia), intrigas e brigas por mais poder, assassinatos (comentados nos livros L’agente secreto du Vaticano/2004, Delitto no Vaticano/1999, Cidade dos Segredos: A verdade por trás dos assassinatos no Vaticano/2006, além do texto “Bugie di sangue no Vaticano/1999, e também, Em Nome de Deus e Assassinato no Vaticano, esses dois últimos livros, a respeito da escandalosa falência do Banco Ambrosiano e a “eliminação” de diversas pessoas, entre elas, o suposto envenenamento do papa João Paulo I), aplicação de numerário em paraísos fiscais (U$ 900 milhões segundo uma reportagem do jornal O Globo, de 22/01/2013), homossexualismo e vários outros escândalos.
Com tantos escândalos e problemas (que caracterizam um partido político corrupto, por aqui) fica difícil prometer alguma coisa nesse sentido (a reabilitação do padre Cícero, dentro da própria Igreja) e , que não seja a criação de um grupo de trabalho, bem como uma comissão para estudar e revisar essa punição secular, mesmo sabendo-se que “comissão é um grupo de incapazes, escolhidos por aqueles sem disposição de fazer o desnecessário”, e justiça seja feita, a Igreja parece não demonstrar o mínimo interesse em resolver o assunto, que não seja ganhar tempo, através de seus dirigentes locais e em nível de Vaticano.
Na trajetória da Entidade, pessoas altamente violentas e sanguinárias, como o padre Pedro de Arbués (o temido Inquisidor da cidade espanhola de Saragossa), Cirilo de Alexandria (um famoso mariólogo e também o responsável pela tortura e morte cruel de Hipácia, uma das maiores inteligências na antiguidade), bem como o Imperador Romano Flávio Valério Constantino (que assassinou um filho, a esposa, o sogro, dois irmãos e três sobrinhos), entre outros foram guindados a condição de santos e adorados nos altares cristãos, pois isso fazia parte do “jogo político” na ascensão da Igreja.
O milagre de Fátima, também é um exemplo vívido dessa “carência”, de vez que o clero fora enxotado do poder em Portugal, em face da queda de Manoel II e o advento da República. Como a situação do padre Cícero não se encaixa em nenhum dos exemplos acima citados, a Igreja valoriza a citação de Gregório VII, conforta os fiéis e cruza os braços, totalmente confiante nos humores da “nação cristã”, que jamais terá ânimo de cobrar-lhe providências.
Entretanto, como no caso do Juazeiro, a Igreja “descobriu” que a romaria nada tem a ver com ela, sendo uma homenagem dos romeiros ao padre Cícero passou a participar “ostensivamente” das festividades chamando pra si a “paternidade” pelo calendário das comemorações. Nesses termos, além da missa festiva do dia 20 de cada mês, no dia 24 de março, a partir de agora (é interessante [?], venha constatar in loco) convoca nada menos que quinze sacerdotes, os quais chefiados pelo próprio bispo, se “esgoelam” em vivas para com um sacerdote excomungado. Isso além de extraordinário deixa no ar forte dose de oportunismo e cinismo por parte dessa Entidade tornando-se necessário levar ao conhecimento público esse fato deveras ESTRANHO!
Num assento contido na obra de Lira Neto (citada acima) e por ocasião do término das missas do dia 20, o bispo, naturalmente exorta os fiéis: “Viva o padre Cícero! – Viva!” “Viva a nossa Igreja Católica! – Viva!” “Viva os padres! – Viva” (olha a carona aí, gente). “Quem ama padre Cícero amará forçosamente todos os padres. Quem fala mal dos padres está falando mal do padre Cícero!” (Olha outra carona aí, gente!).
Finalizando e mais uma vez seria importante saber-se: como a Igreja justifica as missas em homenagem a um padre por si excomungado? Por que a celebração de missas e esses “vivas” para um sacerdote considerado maldito através da Entidade. Convenhamos: diante desse comportamento atrabiliário da Igreja haverá necessidade de outro milagre? “Isso é a transformação da água em vinho”! AMÉM!
José Pereira Gondim é autor das trilogias: A Forja do Cinismo e Jesus e o Cristianismo (a venda em “O Sebo Cultural”/PB, na Livraria Saraiva e outras mais no País), onde esse e outros temas conflitantes são tratados com responsabilidade, mas, sem eufemismos