Gilvan Freire
Quando torturadores da ditadura militar no Brasil – e de resto na Argentina e Chile – cometiam suas atrocidades para supliciar e matar pessoas com as quais tinham diferenças de natureza política e ideológica apenas, havia dois sentimentos dominantes entre os protagonistas desses atos de selvageria. O primeiro era da parte dos seviciados, que achavam que não escapariam das sessões de tortura com vida. E, de fato, muitos não resistiram. O outro sentimento estava sempre estampado na face dos algozes: o da fúria misturada com a euforia, porque os anormais se vangloriam intimamente de suas anormalidades e, como psicopatas, os torturadores regozijam-se diante de cenas desumanas.
Mas havia algo mais no espírito dessas aves de rapina e carniceiros do totalitarismo: a certeza de que nunca seriam descobertos ou punidos, já que recebiam a garantia de superiores e do próprio regime, e a proteção de uma rede de cúmplices, inclusive de setores da imprensa venal, médicos legistas, advogados entreguistas, empresários financiadores e o colaboracionismo de outros poderes do Estado que agiam de cócoras diante das botas dos militares.
Passados esses anos de chumbo, vergonha e entulho histórico, levantaram-se as tampas dos esgotos morais da ditadura e começaram a aparecer os nomes daquelas pessoas que haviam aderido à indústria de carnificina humana em que tinha se convertido o poder putrefatado. Desfilaram quase todos os tiranos e seus cúmplices, através de livros e da imprensa livre e séria do país, e os que pareciam autoridades ilustres e homens respeitados viraram dejetos, escrementos da raça humana, sem direito a nome, biografia e memória familiar saudáveis – nem mesmo uma referencia paterna que pudesse orgulhar seus descendentes. Todos morreram ou estão morrendo vitimas de uma tortura psicológica e moral permanente, sendo apontados pela sociedade como escórias de um tempo anti-civilizado onde homens e abutres comiam no mesmo lixão. Apodreceram vivos.
O ROUBO PÚBLICO VIROU PROGRAMA GOVERNAMENTAL
Assim como as torturas eram parte das ações do Estado para garantir a sobrevivência do regime e dos governantes e serviam para impedir ou inibir a fiscalização pelos agentes políticos mais críticos da ditadura farsista e cruenta – e para propiciar a malversação e pilhagem do patrimônio público, a corrupção hoje no Brasil tem o mesmo viés institucional e um alastramento ainda maior.
Tanto quanto os torturadores da tirania militar, que não foram capazes de prever o futuro que os aguardava e suas penas psicológicas, após descobertos, os corruptos desse momento crítico da vida brasileira, de modo particular da Paraíba, onde a desonestidade pública se expande de forma endêmica, cínica e afrontosa, também não percebem que vão desfilar mais tarde – e não tardará muito – colocando seus nomes e biografias na galeria dos párias morais da sociedade. Seus filhos ficarão deprimidos e nunca terão orgulho para declinar a própria descendência. Este povo não está medindo as conseqüências dessas aventuras em que os meliantes e seus colaboradores estão sendo arrastados à vala comum. E à lama.
O episódio do Jampa Digital é apenas mais um escândalo que envolve trapaças em licitações e desvio de recursos públicos. Há mais empresas envolvidas, mais negócios, mais roubalheira e mais gatunos enroscados na ratoeira que disparou por alguns acasos que os ratos não pressentiam. É que rato tem rabo e quase sempre deixa uma ponta de fora. Se as autoridades não quiserem apenas encobrir, a situação vai se complicar muito. A coisa é mais anterior e maior do que se pensa. Já é uma metodologia de governo. Se o tumor romper-se ainda mais, muitas biografias ilustradas serão reduzidas a pus. E se alguém quer pagar para ver, verá.