O STF faz mal à saúde

Duciran Van Marsen Farena

Procurador da República

O Estado da Paraíba vive uma grave crise no campo da saúde, com centros cirúrgicos fechados, greve de médicos, hospitais sucateados, pacientes morrendo por falta de atendimento, falta de medicamentos excepcionais, dentre outros problemas. Esta doença da saúde, que, à falta de tratamento, é crônica, atravessa agora uma de suas fases agudas, que se alternam com as cada vez menos frequentes fases de “normalidade” da doença, isto é, as carências cotidianas.

O Ministério Público Federal tem realizado intensas ações para sensibilizar os gestores da saúde do Estado quanto a seus deveres, nem sempre com êxito. Foram realizadas reuniões, vistorias, e inclusive uma reunião com o Ministério da Saúde em Brasília, onde, conjuntamente com o Ministério Público do Estado, praticamente fomos levar nosso grito de socorro diante de tantos e tão graves problemas.

Diante da omissão dos poderes competentes no tratamento dos graves problemas da saúde, e da violação diuturna desse direito fundamental social, o Ministério Público Federal tem recorrido a ações judiciais – ações civis públicas – um remédio indesejado, pois muitas vezes a compreensão do Judiciário quanto aos problemas coletivos da saúde não é a mais adequada, mas às vezes é a única alternativa que resta, para evitar que o pior ocorra com os pacientes.

Nas ações propostas em primeira instância, de um modo geral há sensibilidade dos magistrados com o drama dos pacientes, de resto, noticiado todos os dias pela imprensa, e os pedidos liminares, determinando a realização de operações, ou a regularização do fornecimento de medicamentos, são deferidos. Mas quando, por recurso dos poderes (União, Estado da Paraíba, e Município de João Pessoa) a apreciação sobe para as instâncias superiores, a coisa muda de figura.

Entra em cena uma espécie de contracautela pouco conhecida de que se servem os poderes públicos chamada “suspensão de segurança”, utilizada para suspender a eficácia de decisões (liminares ou tutelas antecipadas) em desfavor do poder público. Este instituto, que pode ser manejado pelo próprio Ministério Público, está previsto, dentre outros diplomas legais, nas leis de números 12.016/09, 8.437/92 e 9.494/97, deveria ficar restrito a casos de grave lesão à ordem, segurança, saúde ou economia públicas.

Podemos pensar em casos como liminares para que órgãos públicos realizem vultosos pagamentos antes do final do processo, para liberação de produtos tóxicos proibidos ou para que alunos ingressem em prestigiada universidade pública sem a realização do vestibular. No entanto, o uso abusivo das suspensões, que são concedidas monocraticamente pelos presidentes dos tribunais, tornaram-nas uma espécie de AI-5 judiciário, onde prepondera a vontade (ou a falta de vontade) do adminstrador e a “reserva do possível” (isto é, aquela teoria de que o poder público só está obrigado a concretizar os direitos sociais que exigem prestações positivas, como saúde e educação, se tiver recursos disponíveis, sendo que não raro é dispensada qualquer outra prova da indisponibilidade dos recursos que não seja a palavra do governante)

No caso do direito à saúde, por se tratar de um direito prestacional, isto é, que exige uma prestação positiva do Estado para o cidadão, sempre há necessidade de dispêndio de recursos públicos, posto que obrigam o poder público a regularizar o fornecimento de medicamentos, reabrir UTIs ou realizar operações em pacientes graves. E estas são o principal alvo das suspensões.

As suspensões, concedidas pelos presidentes de tribunais, tranquilizam o gestor e entregam o paciente nas mãos de Deus – em geral, até aproximam-no do Criador, diante da falta do medicamento ou do tratamento. Mas este paciente é anônimo. O autor da ação é o Ministério Público. O Presidente do Tribunal, ao conceder a suspensão, está apenas preocupando-se com os problemas financeiros do governo.

Concedidas sem contraditório, as suspensões são o lado negro do direito, onde todos os direitos fundamentais sociais, juntamente com seus titulares, são reduzidos a pó. São a Constituição não escrita, o reverso das decisões magníficas que proclamam a supremacia dos direitos fundamentais sobre outros interesses menos urgentes. São o triunfo da reserva do possível, da “questão complexa”, do “efeito multiplicador” (isto é, se um conseguir ter o seu direito respeitado, outros que estão na mesma condição vão querer também). Enfim, são o terreno fértil para teses elucubradas para impedir a satisfação coletiva de direitos, deixando apenas a possibilidade de ações individuais – que, destinadas a poucos afortunados, agravam as disparidades sociais e mantêm descuidado o administrador.

Suspensão pode significar morte. Após longa investigação, e depois de inúmeras reuniões com os gestores estadual e municipal, sem qualquer resultado, ingressamos, em abril de 2009, com ação civil pública para obrigar União, Estado e Município a organizarem o sistema de transplantes renais na Paraíba. Isto porque o Estado hoje tem serviço credenciado, equipe completa, coleta órgãos (que são enviados a outros estados) e centro capacitado.

Mas não são realizados transplantes pelo SUS em João Pessoa – e pouquíssimos em Campina Grande. E a fila de espera é de quinhentos pacientes, submetidos à incerteza de constantes exames preparatórios e aos tormentos da hemodiálise. A situação é de desespero total. Os pacientes quando têm condições econômicas, mudam-se para estados vizinhos para ali realizarem suas cirurgias. Os que não podem, definham nas intermináveis e sofridas diálises.

Enquanto não regularizado o serviço, pedimos o envio, através da Central Nacional de Regulação da Alta Complexidade (CNRAC) – dos trinta pacientes mais graves e prontos para cirugia para outros estados – nesse caso o custeio das operações seria pela União. A liminar foi concedida pela Justiça Federal em João Pessoa, Houve recurso ao Tribunal Regional Federal da 5a. Região, que manteve a decisão, considerando-a “justa e razoável”.

E é mesmo. Observe-se que se o serviço não existisse formalmente na Paraíba, os pacientes seriam operados normalmente em outros estados por meio da CNRAC. Mas como o Estado tem capacidade de realizar este transplante, mas não o faz, os pacientes ficam em um beco sem saida, esperando indefinidamente, enquanto o corpo aguentar, pela boa vontade dos gestores.

No entanto, entrou em cena a suspensão da liminar, pelas mãos do Ministro Cézar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal, e do Conselho Nacional de Justiça, entidade que promove, com a melhor das intenções, o “Forum Nacional do Judiciário para a Saúde”. Não satisfeito em considerar grave lesão à ordem pública e à economia, a realização de cirurgias em trinta pobres pacientes paraibanos em outros estados, pelo CNRAC – que, de resto, custearia estas operações se não fosse o enorme paradoxo na existência no Estado de um serviço que não atende ninguém – considerou o ministro também gravemente lesivos outros pedidos, tão simples como a realização de um diagnóstico da situação dos transplantes renais a fim de identificar qual o problema que faz com que um Estado que tem toda a estrutura não realize transplantes. Trata-se de decisão proferida na Suspensão de Tutela Antecipada (STA) nº 390, interposta pela União, e disponível, na íntegra, no site do STF.

Aqui se verifica o enorme hiato entre o discurso dos fóruns, as bonitas palavras de estímulo à conciliação, à solução extrajudicial das demandas de saúde, à integração entre as diferentes instâncias do Judiciário, e a realidade onde qualquer pedido, mesmo o de um simples diagnóstico sobre a prestação do serviço, é considerado gravemente lesivo à ordem pública e à economia.

O Brasil quebraria por pagar o transplante de rim de trinta pacientes? A Paraíba ficaria sem dinheiro por realizar um diagnóstico dos problemas que impedem a realização de transplantes? Em termos de saúde, a ação judicial – coletiva ou individual – deve ser sempre o último recurso – mas recurso necessário, quando o gestor não dá alternativas para a satisfação do direito violado.

Mas quando a suspensão de segurança entra em cena, e o canto de sereia do administrador fala mais alto do que a condição periclitante do paciente, qual é o estímulo para que haja qualquer concessão, sabendo-se que a suspensão permanecerá até o julgamento final da ação, que na melhor das hipóteses dura dez anos? Se a liminar que atenderia o paciente é liquidada de plano, restam apenas as ações individuais, com o congestionamento do Judiciário – exatamente o que o Conselho Nacional de Justiça se propõe a evitar.

Só resta aguardar que a iniciativa do CNJ produza melhores frutos que as decisões de seu presidente. E que a reserva do possível, aparentemente entronizada como princípio fundamental do Estado democrático (?) de direito (?) não acabe se impondo acima de quaisquer boas intenções. Boas intenções que apenas ajudarão a preencher a cota do inferno, se o Judiciário não fizer a sua parte, quando confrontado com situações graves e urgentes que exijam providências imediatas para a preservação da saúde, e da própria vida do cidadão.