Com sua intuição privilegiada e com a coerência e firmeza de um estadista, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) “desmascarou”, ontem, na Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque, a estratégia do presidente norte-americano Donald Trump de apostar na força como instrumento para subjugar países da América Latina. Lula mandou seguidos recados a Trump sem mencionar explicitamente o seu nome, defendendo a soberania do Brasil, criticando tarifas e sanções arbitrárias, além da ingerência no Poder Judiciário, qualificada como inaceitável. O presidente brasileiro roubou a cena, foi bastante aplaudido e fez Trump beijar a lona, ao capitular com o anúncio de que teve um rápido encontro com Lula, “que parecia um homem muito legal” e que agendou uma reunião para a próxima semana a fim de discutir problemas de interesse comum.
Até então, o presidente dos Estados Unidos havia rejeitado todas as tentativas de aproximação feitas pelo governo brasileiro, depois que foi aplicado um tarifaço sobre produtos de bandeira verde-amarelo bem como a chamada Lei Magnitsky contra integrantes do Supremo Tribunal Federal, em retaliação ao processo movido contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que cumpre prisão domiciliar por determinação expressa da Corte. Donald Trump havia afirmado, também, que o Brasil estava indo muito mal e continuará indo muito mal se não se alinhar incondicionalmente a posições do governo norte-americano. Como observam analistas de política externa, no geral as divergências persistiram, com Lula marcando distância de Trump e destacando posições antagônicas sobre imigração, Gaza, OMC, regulação de plataformas digitais e mudanças climáticas.
O presidente brasileiro, ao contrário do que interpretam expoentes do bolsonarismo, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que há meses conspira nos Estados Unidos contra os interesses do seu país, foi cauteloso diante do comportamento de Trump, que é reconhecidamente um líder imprevisível e que se vale do artifício de humilhar publicamente governantes de países com quem tem interlocução, a exemplo do que ocorreu com Volodimir Zelesnky, da Ucrânia. Eduardo Bolsonaro – cujo processo de cassação parece estar em andamento, depois de iniciativas duras finalmente tomadas pelo presidente da Câmara dos Deputados, o paraibano Hugo Motta – chegou a definir como “genial estratégia” a atuação de Trump, que proferiu um discurso maçante e não apresentou nada de novo no contexto das relações internacionais. Em seu estilo narcisista, repetiu um mantra que passou a adotar em causa própria – o de que merece o Prêmio Nobel da Paz, por supostas iniciativas nesse campo, insultando a visão crítica dos analistas que identificam fobia de Trump à expansão do multilateralismo. Numa referência ao ex-presidente Jair Bolsonaro, Lula deixou claro que, pela primeira vez em 525 anos da história brasileira, um ex-chefe de Estado foi condenado por atentar contra o Estado Democrático de Direito, foi investigado, indiciado e julgado e responsabilizado pelos seus atos em um processo minucioso. Acrescentou que Bolsonaro teve amplo direito de defesa, uma prerrogativa que as ditaduras negam às suas vítimas. “Diante dos olhos do mundo, o Brasil deu um recado a todos os autocratas e àqueles que os apoiam: nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis. Em todo o mundo, forças antidemocráticas tentam subjugar as instituições e sufocar as liberdades, cultuam a violência, exaltam a ignorância, atuam como milícias físicas e digitais e cerceiam a imprensa. Assistimos à consolidação de uma desordem internacional marcada por seguidas concessões à política do poder. Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções estão se tornando regra”, acrescentou o mandatário brasileiro.
Lula criticou o “inaceitável” ataque ao Judiciário brasileiro e o tarifaço de Trump como “chantagem econômica”. Disse que a intolerância em assuntos internos conta com o auxílio de uma extrema direita subserviente e saudosista de antigas hegemonias. “Falsos patriotas arquitetam e promovem publicamente ações contra o Brasil. Não há pacificação com impunidade”, pontuou. O rápido encontro entre os dois chefes de Estado aconteceu diante da pior crise já experimentada em 201 anos de relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos, e o verdadeiro libelo do presidente brasileiro se deu um dia após a gestão de Donald Trump acionar mais uma vez restrições de vistos e sanções financeiras da Lei Global Magnitsky contra alvos brasileiros. Dentro do que se esperava, Lula também pediu paz e condenou os ataques de Israel e ao comentar a importância do chamado Sul Global defendeu, mais uma vez, mais cadeiras permanentes no Conselho de Segurança da ONU. Foi um discurso histórico e corajoso que se soma a outros momentos significativos da história da Organização das Nações Unidas.