'descobrimos a trilha do hacker'

O texto sobre deep web foi escrito por um homem que não sabe como funciona a deep web - Por Marie Declercq

Era apenas segunda-feira e já tínhamos o texto mais constrangedor da semana

Neste domingo (21), um texto muito insano foi publicado na internet e todos nós devemos falar sobre ele. Sim, trata-se do artigo revelador escrito por um jornalista paranaense sobre um site secreto criado por Glenn Greenwald do Intercept para facilitar que hackers cometam crimes na “parte mais obscura da internet”. Embora o texto todo ser excepcional enquanto descoberta de um homem que não faz a menor ideia do que é a rede mundial de computadores, já revelaremos logo de cara que ele basicamente achou o link do Intercept que só funciona usando o navegador TOR para enviar anonimamente documentos sensíveis. Sabe, fontes secretas, jornalismo e tal. E essa é a grande descoberta de jornalista. Basicamente é isso.

Deus nos perdoe por linkar uma coisas dessas, mas o texto na íntegra está aqui.

O texto revelador do autor, cujo nome é Oswaldo Eustáquio, já começa com um abre forte. “A trilha do Hacker do Intercept Brasil nos levou ao inferno do The Intercept Brasil, a parte mais obscura da internet, mesmo local onde terroristas nesta semana ameaçaram de morte o presidente Jair Bolsonaro e a Ministra Damares Alves”. Nesse momento, você já deve estar sofrendo palpitações intensas no peito, visto que parece que Oswaldo acabou de adentrar o quinto círculo do inferno frequentado por criminosos habilidosos e qualquer um que seja afiliado ao PSOL.

Oswaldo é um mago das palavras, por isso continua trazendo impacto para o leitor. “Mais do que isso, fizemos a trilha. Uma fonte que não será revelada neste momento nos deu o mapa e os caminhos percorridos pelo hacker do Intercept e vamos mostrar passo a passo para você”. Vamos ignorar que a fonte secreta talvez seja o próprio autor do texto efetuando tarefas simples como baixar o Tor browser, copiar o link supersecreto do Intercept (que está disponível no site deles na surface web) e entrar no SecureDrop, uma ferramenta super comum para enviar arquivos sem precisar se identificar.

Para ampliar a descoberta do jornalista, a ministra Damares Alves deu uma pausa no seu trabalho contra princesas lésbicas da Disney e doutrinação gay nas escolas e tuitou o link da matéria exaltando o trabalho do repórter Otávio. Logo em seguida ela percebeu que errou o nome do jornalista, cuja esposa trabalha com Damares, e fez um novo tuíte corrigindo o nome de Oswaldo.

Voltando ao texto, a exposição de todo o passo-a-passo que Oswaldo fez, convenhamos, é chatíssima. Portanto, é até compreensível a necessidade em falar que foi uma fonte secreta responsável pela revelação do “inferno” do Intercept. Dá mais emoção. Talvez ele possa ter recebido isso mesmo anonimamente. Afinal de contas, entrar na deep web não exige muita coisa de você. Vamos até adicionar uma etapa extra e dizer que talvez a fonte secreta de Oswaldo ou ele mesmo usaram um VPN hospedado no Panamá para não serem identificados no lado mais obscuro da internet.

O texto segue afirmando que Glenn Greenwald mantém um manual para cometer crimes de vazamento e que o Hacker do Interceptprovavelmente realizou o mesmo caminho periculoso para enviar todos os dados vazados do homem com o pior gosto para óculos no mundo, Deltan Dallagnol, ao veículo. Não muito tempo atrás, foi o autor desse mesmo texto responsável pela bombástica gravação da redação do Intercept em uma Starbucks de São Paulo discutindo em voz alta sobre a adulteração de mensagens do promotor supostamente feita pelo Glenn Greenwald e a existência de um hacker que supostamente não veio encontrar a redação naquele dia. Inclusive, esse áudio gravado por Oswaldo foi mencionado em uma entrevista concedida por ele na Jovem Pan, onde nos primeiros minutos o apresentador chama a redação do Intercept de “descolada” porque estava em uma Starbucks. Se o Hacker do Intercept conhece a redação ao vivo a ponto de talvez ir encontrá-los em uma reunião de pauta, por que ele usaria a deep web pra enviar tudo isso sendo que ele poderia entregar em um pen drive criptografado? Pra quê, afinal, ter um hacker se você está adulterando mensagens?

Mas para Oswaldo, perguntas mundanas como estas não podem nos distrair de que ele acredita que Greenwald passou tanto tempo impune ao deixar um canal aberto na deep web para hackers do mundo todo cometerem crimes e invasões. Sua descrição sobre a deep web, aliás, é exatamente a descrição feita por uma pessoa que nunca entrou na deep web: “um ambiente hostil, pirata, a Deep Web, mesmo ambiente onde reina a pedofilia, venda ilegal de armas de fogo e os crimes mais bizarros da história da humanidade”.

https://www.facebook.com/RepublicaDeCuritibaBR/videos/2578331988845276/

O link do Intercept onde só é possível entrar usando o Tor é o SecureDrop. Esse site e ferramenta não é só usado pelo site. Na verdade, é meio muito importante para comunicação de fontes com jornalistas, especialmente no envio de documentos confidenciais sem ter que revelar sua identidade e se colocar em perigo. Sabe como é que né. Jornalismo. Coisa que Oswaldo sabe como funciona, mas agora se constrange publicamente falando besteiras sobre coisas que nunca pesquisou por mais de dois minutos. O que o autor ou sua fonte secreta não quiseram mencionar é que veículos como o New York Times, Motherboard, The Guardian, Buzzfeed, The Washington Post e diversos outros também mantém um link no SecureDrop para o recebimento anônimo de documentos.

A melhor parte do texto não é quando o autor escreve THOR ao invés de TOR, mas sim no parágrafo onde ele mesmo entrega quem é sua fonte secreta que refez o caminho Hacker do Intercept. “(…) reportagem realizada em parceria pelo portal Renews, República de Curitiba e Agora Paraná, comandada pelo jornalista Oswaldo Eustáquio, que assina esta coluna, fez o caminho do hacker da Intercept Brasil.” Sim, basicamente essa árdua investigação foi feita pelo próprio autor e não uma fonte secreta.

Vaidade é a mãe dos pecados capitais, assim como não saber como a internet funciona.

Fonte: Vice
Créditos: Marie Declercq