Entrevista: "Caminhamos para um grande pacto nacional", diz Ayres Britto

Quase três anos depois de deixar o Supremo Tribunal Federal (STF) e de ter comandado o mensalão, o maior julgamento da história recente do país, o ministro aposentado Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto está cada vez mais atento ao cenário político brasileiro. O volume de trabalho é o mesmo da época da Corte, cerca de 12 horas diárias. No seu escritório em Brasília, voltou a exercer a profissão depois da aposentadoria do STF, em 2012. “Sou muito de virar a página, de viver intensamente cada instante. Sou de fazer do breve o intenso.

Para jurista, com ou sem Dilma no poder, brasileiros vão se unir para tirar o país da crise
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Ana Dubeux / , Ana Maria Campos /Correio Braziliense , Leonardo Cavalcanti / , Helena Mader /Correio Braziliense
“Quando se compreende que todos estão no mesmo barco, se ninguém tentar ajudar os timoneiros, o barco naufraga”

Quase três anos depois de deixar o Supremo Tribunal Federal (STF) e de ter comandado o mensalão, o maior julgamento da história recente do país, o ministro aposentado Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto está cada vez mais atento ao cenário político brasileiro. O volume de trabalho é o mesmo da época da Corte, cerca de 12 horas diárias. No seu escritório em Brasília, voltou a exercer a profissão depois da aposentadoria do STF, em 2012. “Sou muito de virar a página, de viver intensamente cada instante. Sou de fazer do breve o intenso. Então, os 10 anos que vivi ali foram vividos intensamente. Quando saí, continuei sendo essa pessoa que faz de cada instante uma imensidão de possibilidades.” Ao longo de quase duas horas de entrevista, Ayres Britto passou boa parte analisando a atual situação da presidente Dilma Rousseff: “Ela já não reúne nenhuma das três qualidades de um presidente”. Mas, antes de tudo, se mostrou um otimista com o Brasil. O motivo para tamanha esperança está na Constituição. A seguir, os principais trechos da entrevista.Como o senhor a cena política? Tenho experimentado um misto de desalento e de alento. O desalento é perceber que a corrupção no Brasil é sistêmica, é atávica, é impressionante. A gente percebe que o principal ponto de fragilidade estrutural do país é a corrupção.

E qual é o motivo de alento?
É que a Constituição combate a corrupção. No artigo 37, está dito: atos de improbidade administrativa importarão perda da função pública. Suspensão dos direitos políticos, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário. Melhor impossível. A Constituição joga duro com a corrupção.

Como sair desta crise?
Escrevi um artigo intitulado “Deus salve a rainha ou salve-se quem puder”. A rainha é a Constituição. Estamos em crise, crise econômica, crise política, é verdade. É uma crise de existência coletiva. Mas não é uma existência de crise. Para resolver, é só você não sair do esquadrio da Constituição. A Constituição contém todos os antídotos que nos permitem sair da crise. A Constituição pegou as instituições criadas por ela, penso no Parlamento, no Executivo, no Ministério Público, e dividiu em dois blocos. Primeiro, o bloco das instituições que governam, o Executivo e o Legislativo, que são poderes eminentemente políticos da República, eleitos pelo povo. E o outro bloco é das instituições que impedem o desgoverno, a polícia, o MP, os tribunais de Contas e o Judiciário. Enquanto essas instituições impeditivas de desgoverno funcionarem, a vaca não vai para o brejo. E de fato, mais e mais o segundo bloco funciona bem.

Se a Constituição é a rainha e, pelo que o senhor fala, salva, a presidente Dilma se salva?
Aí é que está. A presidente é figura central, é chefe do Poder Executivo. Aqui no Brasil é o seguinte: o Poder Executivo é muito forte porque o titular tem três chefias. Exige-se que o presidente seja um estadista, um governante e um administrador. Quando falha nas três, a coisa fica delicada. E parece que é a situação da Dilma. Já não se reconhece nela nenhuma das três qualidades. O desafio dela é se reinventar.

O que ela não está fazendo…
Ela não está conseguindo fazer, eu concordo. Mas, se ela não recupera o prestígio, decai da confiança do povo quanto às três exigências jurídicas para o titular do Poder Executivo: boa gerente, boa chefe de governo e uma estadista. Aí vêm as outras saídas igualmente constitucionais. Quais seriam? Renúncia, impeachment? Sim. Acho que só cabe impeachment para os atos apurados no curso do mandato atual. O cargo é o mesmo, mas os mandatos são dois. Duas eleições, duas diplomações. Duas posses, dois exercícios. Então, ela só reponde por crime de responsabilidade, ensejador do impeachment, se ela cometer um daqueles crimes arrolados pelo artigo 85 no atual mandato. Mas ela está blindada? Não. Você tem a instância penal, a instância eleitoral e está com três processos na Justiça Eleitoral, tem a instância de contas.

Mas ela está com processo eleitoral por causa da campanha…
Mas não é crime de responsabilidade. É crime eleitoral. É preciso entender o seguinte: os crimes de responsabilidade, ali no artigo 85, são também comuns, são eleitorais, são infrações de contas, são infrações civis. Por exemplo, improbidade administrativa, as instâncias não se confundem. A Constituição aperta o cerco contra o governante infrator. Você tem a instância política, que é o impeachment, você tem a instância de contas, que é o TCU, você tem a instância penal, que é o Supremo Tribunal Federal. Você tem a instância civil, por exemplo, improbidade administrativa. Então, quando a gente diz que ela está livre do impeachment por atos praticados no primeiro mandato, as pessoas dizem: “Então, você está blindando a presidente”. Não confunda as coisas. Quanto a crimes de responsabilidade, ela só responde pelo que praticar no atual mandato. É por isso que a Constituição diz assim: artigo 85, são crimes de responsabilidade atos do presidente da República que atentem contra. Não é que atentaram.

Se ela perder o cargo será pelo Poder Judiciário?
Exato, pelo Poder Judiciário.

O Congresso não tem essa força?
Somente se ela cometeu crime de responsabilidade no exercício do mandato. Ao que se sabe, ela não ocorreu nesses seis meses em crime de responsabilidade. Agora, ela está sujeita às outras instâncias de julgamento. Aí viria outra saída que está se cogitando. Seria o parlamentarismo. Cabe a instituição do parlamentarismo?

E o debate sobre parlamentarismo, com um Congresso atolado até o pescoço em corrupção?
Aí é preciso, como sempre, muita cautela. Vamos evitar precipitações. Via plebiscito parece que não seria possível. Quando a Constituição, nas disposições transitórias, disse que dentro de cinco anos haveria um plebiscito para o povo decidir sobre a forma de governo, República ou Monarquia, e sobre o sistema de governo, presidencialismo ou parlamentarismo, tudo faz crer, em uma análise fria e científica, que aquele ato suspendeu a cláusula pétrea da República e do presidencialismo. Foi uma vez só que se deu ao povo a oportunidade de falar sobre esse tema. Via plebiscito então não pode. E via emenda à Constituição? Se for cláusula pétrea, também não.

Qual é a saída?
Aí a renúncia que se apresentaria. Mas se ela não quiser renunciar, não pode ser forçada.

Aí serão três anos sangrando?
Serão três anos de agonia. A menos que outra saída apareça. O brasileiro é muito inventivo. O povo brasileiro tem essa capacidade impressionante.

Pode haver união de forças antagônicas para segurar esse sangramento?
Acredito que sim. Quando se compreende que todos estão no mesmo barco, se ninguém tentar ajudar os timoneiros, o barco naufraga. A não ser o espaço do fisiologismo, do salvacionismo, do golpe.

Esse pacto também pode ser ao contrário, para tentar ver se a presidente sai, não?
Quando a coletividade sente que é hora de fazer destino começa a raciocinar na linha do que disse o presidente Kennedy, em seu discurso de posse, em plena guerra fria. Ele disse: “Esse momento não é de perguntar o que os EUA podem fazer por ele. Cada cidadão tem que perguntar o que pode fazer pelos EUA”. Acho que esse momento chegou. O momento é de cada um perguntar o que pode fazer pelo Brasil.

O Congresso não ajuda muito…
Essa hora vai chegar.

Com o Eduardo Cunha?
Não quero dizer com o Cunha… Olha, eu dirijo aqui em Brasília um instituto, que funciona no UniCeub, aí convidei (o vice-presidente) Michel (Temer) para fazer um discurso. É confortador saber que o vice-presidente da República é um constitucionalista dos bons, é um homem sereno, sensato. Ele tem condições de ser o ponto de aglutinação das forças políticas, nesse momento de consenso necessário. Mas, para esse consenso, é preciso seguir pautas objetivas. E o roteiro desse filme é a Constituição.

Os críticos do MP e da PF dizem que há certo exagero nas prisões da Lava-Jato. O que acha?
Antes, vou voltar ao tema da AP 470 (mensalão). Aquilo foi um marco, uma virada de página política e penal. Pela primeira vez, o procurador-geral de então, Antônio Fernando, seguido por Roberto Gurgel e pelo atual, isso não é pouco não. Três procuradores-gerais afinadíssimos em operacionalização, em concepção das coisas. Antônio Fernando denunciou 40 pessoas, todas situadas nos patamares mais elevados da pirâmide social, até banqueiros, 25 foram condenados e presos. O STF fez uma viagem de seriedade técnica, de qualidade técnica, sem volta, inspirando pessoas como Moro. Sérgio Moro não é de geração espontânea, isso vem num crescendo, num processo.

O que acha do instrumento da delação premiada?
O instituto é válido, desde que respeitados os direitos e garantias constitucionais dos réus. E me parece, pelo que sei de Sérgio Moro, que ele está agindo nos marcos do Estado de direito.

Quais impactos a Operação Lava-Jato terá na sociedade?
Fernando Sabino diz: “É preciso fazer da queda um passo de dança”. E, na vida da gente, quantas vezes em situação de crise a gente fez da queda um passo de dança? A coletividade também sabe fazer isso, daqui a alguns anos  vamos olhar para isso e entender que o saldo foi positivo, no sentido de que o Brasil se qualificou.

Acha que os escândalos deixaram a sociedade mais proativa?
A sociedade vai se habituar a traçar a própria agenda do poder público. Veja o movimento de 16 de agosto que se afigura de um pacto político extraordinário. Porque a cidadania está ativada, está compreendendo que o Estado que queríamos forte para nos proteger, se hipertrofiou para nos espoliar. É preciso menos estatalidade e mais sociedade. E a sociedade precisa passar a se incumbir de certas tarefas que hoje são do Estado e retirando até aquela desculpa do Estado para cobrar mais e mais tributos. Acho que um novo modelo, um redesenho democrático, pode surgir dessa crise.

O senhor participaria de um pacto pela governabilidade?
Olha, não vou antecipar porque os jornais disseram que o presidente Michel Temer me convidou e não vou antecipar. Mas não houve esse convite. Os jornais disseram isso por causa da amizade que tenho com Temer. Prefaciei o último livro dele. Fui assistente dele na PUC, em 1981.

Se for chamado, aceitará?
Prefiro não antecipar.

O que precisa para esse pacto?
As coisas estão se encaminhando naturalmente para um grande pacto nacional.

Com a presidente no poder?
Com a presidente Dilma no poder ou sem. Esse pacto virá.