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Conheça o iraquiano que desafiou o Estado Islâmico com um blog anônimo sobre a cidade de Mossul

Historiador de 31 anos arriscou a vida para levar ao mundo informações de dentro da cidade dominada pelos terroristas

Conheça o iraquiano que desafiou o Estado Islâmico com um blog anônimo sobre Mossul

Três anos e meio depois de começar o primeiro blog anônimo sobre a Mossul dominada pelo Estado Islâmico; dois anos depois de fugir do Iraque por causa das repetidas ameaças de morte que ainda sofre por isso; e seis meses depois de ver sua cidade livre das mãos dos terroristas, o historiador que ganhou fama internacional sob o codinome de ‘Mosul Eye’ (‘o olho de Mossul’, em inglês) decidiu revelar sua identidade.

Em entrevistas concedidas a três veículos – a agência de notícias Associated Press, a rede de televisão americana CNN e o G1 – ele confirmou ser Omar Muhammed, historiador de 31 anos, formado na graduação e no mestrado pela Universidade de Mossul, onde se especializou em história moderna do Oriente Médio.

G1 entrevistou o historiador via WhatsApp, e ele também respondeu a perguntas em vídeo. Em julho, na primeira entrevista que ele concedeu à reportagem sobre seu blog, Omar ainda vivia no anonimato, e revelou apenas sua voz em uma conversa pelo telefone.

Um dos 12 filhos de um homem de negócios que atualmente vive em Bagdá, ele não vê nenhum membro de sua família há dois anos. Durante a batalha pela retomada da cidade, ele perdeu um dos irmãos: Ahmad morreu neste ano, aos 36 anos. Até esta quinta-feira (7), apenas um de seus irmãos sabia que ele é o responsável pelo site que ajudou a levar notícias de dentro de Mossul para o mundo.

O rosto dos olhos de Mossul

Com cabelos castanhos lisos, a barba escondendo um queixo partido e um par de óculos retangulares na frente de sobrancelhas grossas, Omar Muhammed agora coloca um rosto no blog que deu voz a milhares de civis iraquianos na ocupação do Estado Islâmico em Mossul.

Ele disse que precisou fazer isso porque, após a liberação da cidade, um novo capítulo da história de Mossul começou, mas a população local continua sofrendo.

“Depois da chamada liberação de Mossul, não pensei que teríamos uma cidade destruída”, disse ele. Segundo um relatório das Nações Unidas divulgado em julho, o trabalho de livrar a cidade dos explosivos espalhados por todos os lados, depois de nove meses de batalha, deve levar até uma década. Foram “gravemente danificados ou destruídos” mais de 100 quilômetros de ruas e 10 mil prédios, sendo que 85% deles são residenciais. A casa em que a família de Muhammed vive desde 1996, no lado oeste de Mossul, também entrou nessa estatística.

Além da reconstrução de edifícios, Mossul ainda precisa renovar sua infraestrutura básica, como as rede de esgoto, energia e água. Isso sem contar o retorno das crianças à escola e a recuperação econômica, social e cultural da população.

“Para poder lidar com autoridades e com as pessoas da cidade, não posso permanecer anônimo. E também me sinto obrigado a encorajar os jovens de Mossul a ajudarem a reviver a cidade”, explicou ele sobre a sua decisão. “Até hoje me sinto em risco, mas revelar minha identidade vai me colocar em um tipo de risco diferente. Serei um ‘inimigo’ não só para o EI, mas para muitos outros”, disse.

Checagem de fatos

O blog ‘Mosul Eye’ nasceu em 18 de junho de 2014, cerca de duas semanas depois que o Estado Islâmico tomou conta de Mossul, em uma disputa na qual a polícia e o exército iraquianos ofereceram pouca resistência.

Na época, não estava claro se os extremistas ficariam na cidade, e as informações divulgadas na mídia eram contraditórias. Muhammed, então, decidiu publicar os fatos que ele conseguia confirmar caminhando pela cidade, ouvindo seus vizinhos e, às vezes, entrevistando os próprios membros da organização terrorista, sem que eles soubessem.

O blog logo ganhou projeção internacional e passou a ser usado como fonte de informação para jornalistas – há relatos de que suas publicações também ajudaram na operação do exército do Iraque contra os extremistas, diz Muhammed, mas isso nunca foi confirmado.

Truques para manter o anonimato

Ciente de que seria morto caso o EI descobrisse sua conexão com o site, Muhammed precisou tomar uma série de precauções. A primeira delas foi o silêncio: apenas sete pessoas conheciam a identidade do ‘Mosul Eye’, e duas delas viviam no Iraque. Ao resto de seus conhecidos, e inclusive ao próprio EI, ele aprendeu a negar tudo.

Mas soar convincente não foi o único desafio que ele enfrentou. Para não ser descoberto, ele evitava usar papel, caneta e tirar fotos quando apurava informações, e ainda precisou subornar um amigo para que os dados de sua conexão de internet não fossem parar nas mãos do Estado Islâmico.

Como o grupo obrigava os provedores de internet a entregarem as informações sobre os clientes, ele precisou pagar a mais para o amigo manter as suas em segredo. O funcionário, porém, não sabia o motivo, mas Muhammed explica que ele não desconfiou porque muitas pessoas fizeram o mesmo. “Acho que ele vai ficar chocado quando descobrir.”

Documentação

As dificuldades de conexão e segurança impuseram alguns hiatos ao blog no decorrer dos anos, mas, desde 2014, Muhammed publicou centenas de vídeos e textos em inglês e árabe, incluindo ensaios, entrevistas e até relatórios detalhados sobre o número de atrocidades cometidas pelo Estado Islâmico.

Em outubro de 2015, por exemplo, uma tabela produzida por ele foi a público reunindo dados coletados em relatos pessoais, registros médicos e relatórios do próprio EI.

“Estamos documentando, para o registro histórico, tudo o que a população de Mossul está sofrendo nas mãos do Estado Islâmico”, escreveu Omar Muhammed, na época.

No levantamento feito e divulgado pelo ‘Mosul Eye’, ele conta como 176 adolescentes com entre 13 e 15 anos foram alistados ao EI, e transferidos para campos de treinamento religioso e militar, em um período de três dias em setembro. Muhammed listou, ainda, o preço das taxas de matrículas que o EI, tentando angariar fundos de todos os modos possíveis, passou a cobrar dos estudantes, e relata episódios como a explosão de um esconderijo do EI devido a uma falha elétrica em um depósito de explosivos e munições, que matou 13 terroristas.

Pessoas condenadas à morte:

  • por acusações de blasfêmia, apostasia, espionagem ou sexo fora do casamento: 120
  • autoridades, políticos, funcionários públicos e líderes comunitários: 58
  • por venderem cigarros: 4
  • por roubo ou assassinato: 5
  • garotas da comunidade Yazidi mortas: 5

Pessoas condenadas a chibatadas:

  • por ouvir música: 2
  • por cortar a barba ou desrespeitar o código de vestimentas: 59
  • por fumar em público: 22
  • por não comparecer ou se atrasar para as rezas: 12
  • por não fechar o comércio durante as rezas: 8
  • por cometer ato sexual: 5
  • por atrasar o pagamento de impostos: 4
  • por questionar assuntos religiosos: 6

Além disso, outras 88 pessoas tiveram a mão amputada por roubo, e 118 foram presas por alguns dos crimes acima.

Publicações como essa fizeram o historiador ganhar projeção mundial e criar uma comunidade de iraquianos, árabes e ocidentais em torno de projetos e campanhas para manter Mossul conectada do resto do mundo (conheça um deles abaixo):

 Após expulsão do Estado Islâmico, historiador tenta reconstruir biblioteca da Universidade

Após expulsão do Estado Islâmico, historiador tenta reconstruir biblioteca da Universidade

Atualmente, quase 300 mil pessoas seguem sua página no Facebook, mais de 23 mil acompanham seus tuítes e um grupo on-line tem mais de 3 mil membros trocando informações.

Além disso, ele passou a receber convites para diversos eventos e encontros, como uma conferência na República Tcheca para discutir a situação de Mossul e até uma reunião com Malala Yousafzai, a ativista paquistanesa que sobreviveu a um atentado do Talibã e venceu o Prêmio Nobel da Paz. Até agora, para manter o anonimato, Muhammed participava apenas por telefone ou via teleconferência, mas apenas permitia que as pessoas ouvissem sua voz, nunca o seu rosto.

“A Malala perguntou o meu nome, mas não contei a ela”, disse ele. Apesar de ter recusado o convite para revelar sua identidade à jovem, ele enviou três amigas suas de Mossul, que o representaram no encontro e levaram de volta um livro autografado em nome de ‘Mosul Eye’ – mas ele até hoje não conseguiu colocar as mãos nesse exemplar.

Vida sob o medo

O trabalho que o alçou à fama fez com que Estado Islâmico passasse a tratar o dono do blog ‘Mosul Eye’ como um de seus grandes inimigos locais, e submeteu Omar Muhammed a um estado de medo constante.

Durante um ano e meio, Omar lidou com essa angústia sozinho, mas, em dezembro de 2015, ele decidiu que era hora de fugir. “No último momento em que abracei e beijei a minha mãe, não pude contar a ela por que estava indo embora. Ela ainda estava dormindo. Falei que estava indo. Ela me perguntou para onde. Só disse que estava indo, e dei um beijo nela.”

Na tentativa de escapar com vida, Muhammed diz que precisou contratar coiotes para ir até a Síria e, depois, para a Turquia. De lá, ele manteve ativa uma rede de voluntários que enviavam informações aos seus endereços virtuais anônimos, para que ele as publicasse no ‘Mosul Eye’.

Longe de casa

Seu plano original era viver na Turquia, para não se afastar muito de sua família e da cidade onde nasceu e cresceu. Mas, depois de um ano, ele precisou sair de novo. “Eu temia o Estado Islâmico e as autoridades turcas”, resumiu ele.

Em 2016, Muhammed se mudou para um país europeu que ele não divulga publicamente, para evitar a perseguição dos terroristas. Apesar de se sentir feliz com a liberdade de poder andar nas ruas sem medo, ele sofre com a distância. Principalmente da mãe, com quem fala duas vezes ao dia, pela manhã e à noite, e que, mesmo sem saber, já foi citada no blog anônimo.

Perguntado se se arrepende de ter começado o blog que mudou sua vida para sempre, o historiador responde que não. “Gosto de trabalhar na escuridão para servir a luz.” Mas admite que não imaginava que o domínio do Estado Islâmico sobre Mossul duraria tanto, e diz que, se soubesse que seria obrigado a fugir de sua cidade para sobreviver, teria pensado duas vezes.

Fonte: G1
Créditos: Ana Carolina Moreno