Suprema ironia

Ação de Jungmann se volta contra Temer no STF

Uma petição protocolada no Supremo Tribunal Federal por Raul Jungmann contra Dilma Rousseff virou uma espécie de bala perdida que pode atingir Michel Temer. Graças à ação de Jungmann, o ex-ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, anotou em decisão de 15 de maio de 2015 que o entendimento consolidado da Suprema Corte permitiria a abertura de investigação contra Dilma na Lava Jato caso houvesse indícios do envolvimento dela em irregularidades.

Agora, valendo-se da mesma tese, a procuradora-geral da República Raquel Dodge pede a instauração de inquérito para investigar Temer no caso do jantar do Jaburu, que envolve o pagamento de propina de R$ 10 milhões da Odebrecht. Suprema ironia: quando foi ao Supremo contra Dilma, Jungmann era deputado federal pelo PPS de Pernambuco. Decorridos quase três anos, virou um dos mais prestigiados ministros de Temer. Acaba de ser transferido da pasta da Defesa para o Ministério Extraordinário da Segurança Pública, nova coqueluche do govermo.

Na ação judicial de 2015, assinada a pedido de Jungmann pelo presidente do PPS, Roberto Freire, o agora ministro da Segurança contestava uma posição de Rodrigo Janot, antecessor de Raquel Dodge no comando da Procuradoria-Geral da República. O nome de Dilma fora citado pelo ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Ele dissera que o ex-ministro petista Antonio Palocci o procurara para pedir dinheiro para o caixa dois da campanha presidencial de Dilma em 2010. A despeito da menção do delator, Janot sustentou no Supremo que Dilma não poderia ser investigada.

Janot escorou-se em dois argumentos. Num, alegou que não havia indícios sólidos que justificassem a abertura de um inquérito. Noutro, argumentou que, mesmo que desejasse investigar a então presidente petista, a Constituição não permitiria. Nessa versão, os presidentes da República seriam beneficiários de algo que Janot chamou de “imunidade temporária”. Por quê? O paragrafo 4º do artigo 86 da Constituição anota que “o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.”

Traduzindo para o português das ruas: enquanto estiver no Planalto, um presidente não pode ser incomodado por crime cometido antes do início do seu mandato. Pois bem. Auxiliado pelos advogados do PPS, Jungmann buscou nos arquivos do próprio Supremo decisões que contrariavam o entendimento de Janot. Encontrou duas: uma do decano Celso de Mello e outra de Sepúlveda Pertence, já aposentado.

Escorando-se nestas decisões, a petição do PPS sustentava que o presidente poderia, sim, ser investigado por crimes cometidos antes do mandato. O que a Constituição proíbe é a responsabilização criminal. Assim, a investigação garantiria a coleta de provas que seriam utilizadas para a eventual abertura de ação penal depois que terminasse o mandato do alvo do inquérito.

Teori Zavaschi, que morreria depois em acidente aéreo, já havia concordado com a tese da “imunidade temporária” de Dilma. Mas deu o braço a torcer. No despacho que assinou em 15 de maio de 2015, Teori escreveu:

“Não se nega que há entendimento desta Suprema Corte no sentido de que a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no parágrafo quarto do artigo 86 da Constituição (o presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções) não inviabiliza, se for o caso, a instauração de procedimento meramente investigatório, destinado a formar ou a preservar a base probatória para uma eventual e futura demanda contra o chefe do Poder Executivo.” (veja reprodução abaixo)

Cabeçalho do despacho de Teori Zavaschi em resposta à petição de Raul Jungmann, do PPS

Trecho em que Teori admite investigar presidentes por crimes cometidos antes do início do mandato

Embora tenha reconhecido a possibilidade de abertura de investigação contra presidentes da República, Teori anotou no mesmo despacho que, em relação a Dilma, não havia o que fazer, pois Janot alegara não ter encontrado indícios que justificassem a abertura de um inquérito contra ela. E o Supremo, acrescentou Teori, não poderia agir sem ser acionado pelo chefe do Ministério Público Federal. “Cabe exclusivamente ao procurador-geral da República requerer abertura de inquérito, oferecer a inicial acusatória e propugnar medidas investigatórias”, justificou-se, antes de enviar a petição de Jungmann para o arquivo.

Em relação a Temer a coisa é diferente. O jantar do Jaburu, no qual Marcelo Odebrecht foi mordido em R$ 10 milhões, foi citado por seis delatores da construtora. Janot considerou que havia matéria prima para um inquérito. Mas invocou em favor de Temer a mesma tese da “imunidade temporária” que levantara como escudo para Dilma. O ministro Edson Fachin, que herdou de Teori Zavaschi a relatoria da Lava Jato no Supremo, atendeu às ponderações de Janot. Abriu inquérito apenas contra os ministros palacianos Eliseu Padilha e Moreira Franco, deixando Temer de fora.

Sobreveio a posse de Raquel Dodge no comando da Procuradoria, em setembro de 2017. Na última terça-feira, com mais de cinco meses de atraso, a doutora enviou ofício a Fachin pedindo a inclusão de Temer no inquérito sobre o jantar do Jaburu. Cabe ao relator da Lava Jato decidir se acata ou não o pedido. Ele pode dividir a decisão com o plenário do Supremo. Graças a Jungmann, Fachin irá se deparar com o despacho de Teori ao estudar o caso.

Fonte: Josias de Souza
Créditos: Josias de Souza