testemunha

Todos participaram de carnificina, diz agente mantido refém no AM

Quando explodiu foi uma coisa horrível. Eles querem matar, furar, espetar, fazer tu

presidio-manausO agente penitenciário João (nome fictício), 50, foi um dos 12 reféns no Compaj, complexo penitenciário de Manaus onde 56 presos morreram na guerra de facções. Funcionário da Umanizzare, empresa que atua na prisão, ele diz que os reféns foram poupados pelos presos, mas não por policiais, e que houve violência generalizada. O Estado diz que os laudos, até o momento, não constataram mortes por armas dos PMs.

Começou por volta das 15h. Há internos que retiram o lixo [das celas], colocam num local dentro do presídio, e a empresa põe para fora.

Nessa hora de deixar o lixo, os presos [da facção Família do Norte ] pegaram uma oportunidade para chegar até a área do PCC. Eles renderam um agente [penitenciário] que iria trocar [de turno] e invadiram. E começou o tiroteio.

Em cada um dos quatro pavilhões havia dois representantes [dos presos]. Tinham 16 armas no total. Como essas armas entraram? Os agentes [penitenciários] não têm como colocar uma arma ou faca para dentro [do presídio], porque passam por três revistas rigorosas.

Quando explodiu foi uma coisa horrível. Eles querem matar, furar, espetar, fazer tudo. Mas teve uns representantes das alas [dos presos] que falaram para os outros internos que não era para machucar a gente, que a briga deles não era com os agentes, mas sim com a outra facção.

Foi por isso que alguns colegas [agentes] saíram ilesos, sem machucado nem nada. Alguns saíram machucados, mas na hora do tumulto.

A própria polícia estava dando tiro na gente. Quando os policiais entraram, não queriam saber se era agente ou bandido ali. Muitos de nós levantamos as mãos avisando que éramos agentes. Mas eles atiravam. Ainda bem que a polícia de choque não entrou logo de início, se não a gente ia morrer.

Todos os presos participaram da carnificina. Só não participou quem morreu. Os que se escondiam morriam. Os que se escondiam no forro, [os presos amotinados] iam lá, matavam e jogavam para baixo. Os que se escondiam em cima do telhado, eles levavam para a quadra.

Rebelião e morte em Manaus

Os presos matavam com tiro e depois cortavam. Tiravam coração, tripa. Vi com meus próprios olhos. Até hoje para dormir é na base de remédios. Nunca mais vou esquecer daquilo. Você vê a pessoa cortando a cabeça da outra, tirando coração, tripa.

Deve ser muita droga. Uma pessoa sã não faz uma coisa dessas. Mas uma pessoa drogada tem coragem para tudo. Eles já são condenados. Não têm nada a perder.

Segundo relatos, eles quebraram um buraco no muro e passaram por lá as escopetas, no muro do semiaberto. Muitas armas que eu nunca tinha visto na minha vida. Um saco de bala. Muita bala.

Deve haver muito mais do que os 56 mortos que estão divulgando. Fora os corpos dos que se esconderam no esgoto, que é gradeado, muitos não puderam sair. Colocaram colchões com fogo, e só com a fumaça mata.

À VONTADE

Houve uma fuga pequena de 12 ou 15 no Compaj, de presos da FDN [Família do Norte], um mês atrás. Mas foram recapturados. Quando eles voltaram, o pessoal do PCC chamou um certo reeducando da FDN que ia passando: “Olha a fuga das galinhas.”

Quando eles iam para escolta médica, ficavam cutucando, falando que iam matar, estuprar a família deles, provocando e cavando a própria cova. A gente ainda conversava com eles: “Não mexam, eles são a maioria aqui”.

Nosso sistema é muito falho. A gente manda ofícios, não é atendido. Entra colchão, comida à vontade, tem festa e pagode. A empresa Umanizzare [contratada pelo Estado], por meio do Delta [um dos supervisores dos agentes], fez uma documentação em novembro, em dezembro outra, mandou para a secretaria [do Estado] relatando tudo.

Antes a revista era feita pela polícia de choque. Agora, é feita pela secretaria.

Todos os agentes [penitenciários] foram revistados naquele dia. Passa pela primeira portaria, é revistado. Tira tudo e põe no guarda-volumes, não fica nada com a gente. Até um anel tem que deixar, porque passa pelo detector de metal. E as visitas passam pelo mesmo procedimento, feito pela secretaria.

No dia da chacina, foi normal, tivemos as três revistas. Por isso que eu digo: não tem como um agente colocar arma para dentro.

Muita gente presa lá estava para sair. O sistema é muito lento para julgar e retirar a pessoa que já cumpriu pena. Muitas pessoas que já cumpriram ainda estão lá dentro.

PROFISSÃO

Graças a Deus, os representantes [dos presos] tiveram mais consideração com a gente do que o próprio governo. A secretaria queria invadir na madrugada e atirou contra a gente no portão.

Quando foi pela manhã, o senhor secretário não quis sabe se estávamos bem, nem sequer ofereceu copo de água. O governador vai na mídia anunciar que vai ajudar a família dos presos mortos. E os agentes que estavam lá, que sofreram represália?

Não somos nem concursados. Fizemos um curso por um mês. Todos os dias, de segunda a sábado. Aprendemos sobre defesa pessoal, incêndio, salvamento, primeiros socorros. Não temos segurança nem rota de fuga. Se tivesse, todos os agentes teriam fugido.

Eu não retorno mais [ao presídio] não. Tenho certeza que vou sair dessa vida. O dinheiro que ganha não vale a pena, menos de R$ 2.000. Fora o risco de morte.

Fonte: Folha de S. Paulo