Censura?

Governo do estado fecha exposição na Casa França-Brasil que teria performance com nudez e crítica à tortura

 Em nota enviada à imprensa, o secretário de Cultura e Economia Criativa, Ruan Lira, afirmou que o cancelamento foi realizado devido a um descumprimento de contrato.

A Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro cancelou o último dia da exposição “Literatura exposta” na Casa França-Brasil. A programação deste domingo incluía uma performance do coletivo És Uma Maluca, que faria uma crítica à tortura durante a ditadura militar, com duas mulheres nuas interagindo com a obra “A voz do ralo é a voz de deus” . Tal obra já havia sofrido interferência da direção da casa quando foi inaugurada no mês passado .

“A decisão foi tomada devido ao descumprimento do contrato assinado entre as partes em 3 de julho de 2018 e que prevê o cancelamento unilateral em caso de descumprimento das obrigações estabelecidas. O referido contrato não inclui em seu objeto a programação informada para o último dia do evento. Também exige que as atividades sejam autorizadas pelo Iphan, com pedido feito com 45 dias de antecedência, o que não ocorreu – impedindo, portanto, a realização do programa agendado para este domingo”, escreveu.

Em mensagem publicada em sua conta no Instagram, o curador da exposição, Álvaro Figueiredo, diz que a direção da Casa França-Brasil já estava previamente avisada sobre a realização da performance deste domingo. E completou:

“Censura à exposição Literatura Exposta! Fecharam nossa exposição um dia antes da data oficial como forma de impedir que as performances da finissage acontecessem. Comuniquei com antecedência o teor das performances à direção da Casa, foi autorizado e ontem à noite enviaram esse comunicado. Esse é o governo que temos. A arte vai sobreviver aos ignorantes”, escreveu o curador, ao compartilhar o e-mail que recebeu na noite de sábado avisando sobre o cancelamento da exposição. A mensagem compartilhada por Figueiredo afirma ainda que o cancelamento da exposição foi uma ordem do governador do Rio, Wilson Witzel.

Para Figueiredo, não faz sentido a secretaria de cultura exigir um detalhamento do que seria apresentado na exposição no momento em que o contrato foi firmado, pois os artistas desenvolveram as obras após a contratação.

— Tanto que, quando me pediram o projeto, nunca me cobraram o conteúdo do que os artistas iam fazer, porque a gente não sabia ainda o que eles iriam preparar. A única obrigação que eles tinham era entregar o trabalho — afirmou o curador, ao ressaltar que, mesmo assim, encaminhou à Casa França-Brasil nesta semana informações sobre o encerramento.

— A gente teve o cuidado de mandar para a Casa França-Brasil, a partir de terça-feira, o detalhamento de como seriam as três performances do encerramento. O único pedido foi de que a gente alertasse que a performance do És Uma Maluca não era indicada para menores de 18 anos. artes plásticas

Ele considera “estranha” a movimentação na véspera da apresentação.

— O que a gente pode entender disso? É um absurdo. Como isso chegou ao governador, e por que ele está preocupado com uma exposição na Casa França-Brasil? Pra mim isso é uma censura, não posso entender de outra forma. Se isso foi comunicado antes, por que mudaram de ideia agora?

O GLOBO ainda entrou em contato com o coletivo És Uma Maluca. De acordo com o grupo — que prefere se manifestar apenas coletivamente — a performance deste domingo estava inicialmente prevista para ser realizada durante a abertura da exposição. No entanto, a pedido da administração da Casa França-Brasil, foi adiada para o encerramento.

Segunda proibição

O cancelamento da performance representa a segunda proibição ao trabalho do coletivo És Uma Maluca durante a realização da exposição. Em dezembro, antes da atual gestão do governo do estado assumir, o diretor da Casa França-Brasil, Jesus Chediak, e o então secretário estadual de Cultura, Leandro Monteiro, decidiram proibir o áudio da instalação do coletivo, que em sua primeira versão utilizava a voz do presidente Jair Bolsonaro.

Batizada de “A voz do ralo é a voz de Deus”, a instalação foi criada pelo coletivo é composta de 6 mil baratas de plástico em volta da tampa de um bueiro, do qual saiam trechos de discursos do presidente eleito. Para driblar a proibição, os artistas substituíram o discurso político por uma receita de bolo, recurso utilizado frequentemente por jornais que eram censurados durante a ditadura militar.

Para a exposição Literatura Exposta, cada artista ou coletivo havia sido provocado a criar uma obra a partir da releitura de um texto de um escritor considerado periférico. O trabalho do És Uma Maluca inspirou-se no conto “Baratária”, do escritor Rodrigo Santos, de São Gonçalo.

Vencedor do primeiro Prêmio Festa Literária das Periferias (Flup), em 2012, Santos escreveu o conto em 2016. É a história de uma mulher que tem traumas de baratas desde que caiu em um túmulo cheio delas, no enterro de sua avó. Nos anos de chumbo, ela é presa, e um torturador introduz os insetos em sua vagina. Anos depois, a personagem o reconhece num bar do Rio e parte para cima dele, também usando uma barata encontrada no banheiro do estabelecimento.

Fonte: El país
Créditos: El país