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“Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo” - Por Estevam Dedalus

"A religião perdeu sua centralidade no Ocidente"

“Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo.” Essa frase é de Voltaire. Um dos meus escritores favoritos. Nem por isso estou inclinado a aceitá-la. Não é por meio do princípio de autoridade que se vence um debate. O argumento de Voltaire se sustenta na ideia de que sem Deus não existiria certo e errado. A vida se tornaria um caos. Sem freios morais, o egoísmo prevaleceria. A crença em Deus seria indispensável para abrandar nossos corações. Diminuir conflitos. Produzir afetos. Solidariedade. Um senso de justiça. Sem ela a sociedade, tal qual conhecemos, seria impossível.

Voltaire exagera um pouco na tinta, mas não deixa de ser verdade que a religião é grande criadora de moralidade e sentido. Há várias formas de demonstrar. Nesse aspecto, gosto das ideias de outro francês: Émile Durkheim. Seus argumentos são mais sociológicos que filosóficos, com destaque para a importância atribuída aos rituais religiosos na criação da ordem social.

Rituais são importantes por ligarem as pessoas. Isso é fácil de entender. Podemos pensar em membros de uma torcida organizada que vestem o mesmo tipo de roupa, cantam hinos, rugem palavras de ordem, seguem as mesmas regras e são apaixonados pelo mesmo time. Tais experiências dariam a essas pessoas uma “consciência comum”. O mesmo acontece com as religiões e seus rituais repletos de emoção e moralidade; profundamente marcados pela rotura entre o sagrado e o profano.

Durkheim observa outro detalhe importante: “não há sociedade sem ideias”. São elas que fornecem sentido e unidade ao mundo. Sua fonte primária seria os rituais, mas elas podem ganhar relativa autonomia; serem modificadas ou mesmo alterar as relações sociais. As ideias exercem o mesmo efeito agregador dos rituais com a vantagem de ter um alcance mais geral, pois não necessitam do contato direto entre as pessoas. Os símbolos são um exemplo. O crucifixo tem um significado que ultrapassa o “aqui e agora”, como a bandeira nacional é algo que nos une enquanto povo.

Até aqui fica a sensação de que tudo o que disse pode ser usado para abonar as palavras de Voltaire. É preciso levar em consideração, porém, que as religiões não são a única fonte de moralidade. Esse argumento ganha força quando entramos no mundo fascinante da cultura. No menor grupo existirá algum sistema de regras e um sentimento moral. Isso vale até mesmo para grupos de criminosos como as máfias, gangues e piratas que geralmente são vistos como imorais.

A antropóloga Karina Biondi é autora de uma pesquisa interessantíssima sobre o PCC. Ela percebeu como a organização se apoiava num senso de moralidade que inclui princípios de valorização da vida e dignidade dos presos. Ao dominar as penitenciárias, o PCC estabeleceu regras que levaram à diminuição da violência, ao aumento da segurança dos detentos e à proibição do consumo de drogas. O que para algumas pessoas soa como algo surreal.

As noções de certo e errado tendem a variar culturalmente. O que nos coloca em dificuldade. Elas nem sempre têm uma base religiosa. No próprio universo religioso existem divergências “ontológicas”. Se nos limitássemos a católicos e protestantes os desacordos já seriam gigantescos. Agora, então, se fôssemos tentar encontrá-las no meio de milhares de religiões criadas pelo homem?

Eu não deixaria de observar o seguinte: “Deus está morto!”. Não quero dizer com isso que a religião perdeu toda a sua importância. É uma questão histórica e cultural. Adoto o mesmo tipo de raciocínio de Nietzsche, Weber, Eagleton e outros, quando dizem que a religião perdeu sua centralidade no Ocidente. Vários fatores atestam essa ideia como a secularização, a ascensão da ciência, o pluralismo, o número cada vez maior de pessoas sem religião e o papel secundário desempenhado na vida pública (estou me referindo às democracias seculares europeias). A religião segue a mesma trajetória em direção à esfera privada que fizeram a arte e a sexualidade.

O enfraquecimento da fé religiosa não empurrou a Inglaterra, a França, a Noruega, a Suécia, a Suíça, a Holanda, a Dinamarca, a Alemanha… para o completo caos. Elas continuam apresentando baixos índices de criminalidade. Os países nórdicos que têm um número elevado de ateus e de pessoas sem religião, curiosamente, estão fechando presídios e igrejas. A ordem social, assim como o senso de moralidade, não depende necessariamente da crença em Deus ou na imortalidade

Fonte: Estevam Dedalos
Créditos: Estevam Dedalos