opinião

'APESAR DE VOCÊ' - Por Rui Leitão

A canção de Chico volta a ser esse hino de esperança por dias melhores, livres da opressão, do autoritarismo e do culto a personalidades que se acham acima da lei.

Chico Buarque, ao voltar do seu autoexílio na Itália, em 1970, elaborou o samba “Apesar de você”, em cuja letra fala da indignação com a situação em que se encontrava o país, mergulhado numa sangrenta ditadura militar, e da esperança de um povo que sonhava ver o retorno à democracia e à liberdade. Na letra ele se dirige diretamente ao General Médici, que exercia a presidência da República, e quando a submete à censura federal, o tom de protesto dirigido à maior autoridade do país, surpreendentemente, não foi percebido e a música foi liberada. Quando compreendido o verdadeiro sentido da mensagem, ela foi proibida e só voltou a ser autorizada em 1978.

No entanto, mesmo escrita há mais de quarenta anos, nunca perdeu sua atualidade, pois, passados os “anos de chumbo”, nós brasileiros, de vez em quando, somos surpreendidos por governantes eleitos democraticamente, se comportando como se fossem ditadores, exercendo o poder de forma arbitrária e antidemocrática. E aí vem o grito de insatisfação e a manifestação da vontade de corrigir o equívoco cometido e voltarmos a viver um clima de paz, alegria e respeito aos conceitos republicanos. A canção de Chico
volta a ser esse hino de esperança por dias melhores, livres da opressão, do autoritarismo e do culto a personalidades que se acham acima da lei.

“Hoje você é quem manda/falou, tá falado/não tem discussão, não/a minha gente hoje anda/falando de lado e olhando pro chão/viu?… apesar de você/amanhã há de ser/outro dia/você vai se dar mal/etc. e tal/ la, lá, laia lá.”

Chico dirigia-se diretamente ao Presidente Médici, autoridade maior, cuja palavra não poderia nunca ser contestada, sob pena da aplicação de punições severas a quem ousasse fazê-lo. Nos momentos atuais ainda há gente que pensa assim ao ocupar um cargo de direção, seja ele em que nível de hierarquia for. Os oprimidos, submetidos ao império do medo e das ameaças, ficam murmurando seu descontentamento às escondidas, no cochicho, “falando de lado”, e desanimados, poucos se atrevem a encarar seus opressores. A grande maioria fica “olhando pro chão”.

Critica o regime ditatorial a que foi imposta a nação, um estado de absoluta submissão aos ditames dos poderosos de plantão. Os “pecados” que eram cometidos, com torturas, assassinatos, censura prévia, marcas do regime, não permitiam seus executores conhecerem a palavra perdão.

O poder é efêmero, embora muitos raciocinem que seja eterno. Um dia tudo muda. Apesar dessa impressão de que vai continuar dando as ordens, contrariando o pensamento da coletividade, nunca morre a esperança de que melhores dias virão. E lança a pergunta, o que fará o tirano quando a multidão nas ruas estiver comemorando a conquista da liberdade? Onde irá esconder sua vergonha e sua tristeza de perder o comando da situação? Quando enfim se perceber sem forças para impedir o “canto do galo”, a voz das ruas, o povo respirando os ares da democracia e o amor reinando entre as pessoas ao se confraternizarem festejando a vitória?

Sonha com o instante em que vai dar o troco, não num espírito de vingança, mas numa aspiração de fazer justiça. Alguém teria que ser responsabilizado por todo o sofrimento causado. Esse ambiente de tristeza, de falta de solidariedade, fraternidade, amor, a imposição do silêncio e a censura das manifestações até na produção das músicas da época, teriam um preço a pagar.

Ora, quem provocou todo o clima de tensão, de insegurança, de temor, teria a obrigação de alterar esse estágio de aflição. Chico volta a profetizar de que o “penar” do povo brasileiro um dia seria punido de maneira justa.

Chico aposta na luta dos que acreditavam que o “jardim iria florescer”, a despeito de toda a repressão do governo. E imagina como se sentirá o “todo poderoso”, ao assistir os acontecimentos que tanto procurou impedir, quando o “novo dia raiar”. Nesse momento os que antes viviam no sofrimento passariam a rir dos opressores, lançados à margem do poder, desprezados, ignorados pelos que padeceram agruras em suas mãos. Como os ditadores creem que nunca perderão a “majestade”, se surpreenderão com a antecipação da sua queda.

Apesar da tirania nada impedirá que o futuro seja de dias claros, inspirando os poetas, num ambiente da mais perfeita alegria. E aí então, o ditador sentirá dificuldades para justificar suas atrocidades, suas maldades, as injustiças praticadas. Não terá mais forças para calar o povo que estará na praça pública cantando a vitória.

“Quem aqui faz aqui paga” é um ditado muito usado pela sabedoria popular. “Nada melhor do que um dia atrás do outro”, é outra sábia manifestação do povo. Em ambas as afirmações, a lição de que o uso do poder para maltratar o povo terá sempre resposta a altura e finalizando suas histórias melancolicamente. É preciso exercitar a resistência para que a democracia não morra.

Fonte: Rui Leitão
Créditos: Rui Leitão