Casa dividida

ANÁLISE: Maurício Macri sob pressão de setores conservadores após aprovação do aborto

Por essa setores conservadores da Argentina não esperavam. Muitos dos que votaram no presidente Mauricio Macri em 2015, sobretudo das classes média e média alta das grandes cidades, jamais imaginaram que ele seria o primeiro chefe de Estado desde a redemocratização do país, em 1983, que promoveria o debate legislativo sobre aborto legal, livre e gratuito. É verdade que a vitória parcial desta quinta-feira não é mérito de Macri, que, aliás, nunca expôs publicamente sua posição sobre a iniciativa. O mérito, sem dúvida, é dos movimentos feministas do país. Mas também é verdade que a discussão chegou ao Congresso graças ao empurrão dado pelo presidente no começo do ano, em seu discurso de abertura das sessões legislativas. E esse empurrão poderá custar caro ao chefe de Estado, caso o projeto, finalmente, se torne lei.

Atrizes argentinas fazem panelaço pela legalização do aborto

A Casa Rosada, dividida como o país, está diante de uma encruzilhada do tipo “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”. Se respaldar o aborto legal estará aderindo à posição que, segundo pesquisas, mais de 50% dos argentinos defendem. A pressão nas ruas é intensa e a força dos grupos feministas está se expandindo e chegando até mesmo a adolescentes de 16 e 17 anos que, pela primeira vez, decidiram militar por uma causa social. Mas, se essa for a decisão do governo, ele arriscaria perder apoio entre representantes de setores que foram chaves na eleição presidencial de Macri. E isso aconteceria em momentos em que o chefe de Estado está em baixa nas pesquisas pela deterioração da situação econômica.

Votação no Senado ainda sem data marcada

A votação no Senado, composto por 72 cadeiras, será um novo capítulo nesta queda de braço histórica para a Argentina. Lá exercem pressão os governadores das 24 províncias, muitas das quais têm um perfil claramente conservador, sobretudo no Norte do país. Em muitas, o protocolo atualmente vigente sobre aborto, que permite interromper gestações em caso de estupro e risco de vida da mãe, nunca foi implementado. E lá a Igreja, por meio dos governadores, tem um peso muito maior.

A decisão no Senado ainda não tem data marcada. A Argentina entrará, agora, num período de debate ainda mais acirrado na mídia e redes sociais, com um dos lados fortalecido pelo triunfo na Câmara. Esperam-se mais marchas, manifestações, ruído e lenços verdes (símbolo da campanha pelo aborto legal), em todo o país.

Em 2010, a Argentina se tornou o primeiro país da América Latina a aprovar uma lei de casamento gay. Foi um passo histórico, para o mesmo país que só teve lei de divórcio em 1987. Nesta quinta-feira, o Congresso colocou-se, novamente, na vanguarda do continente ao aprovar, na Câmara, o projeto de legalização do aborto até as 14 semanas de gestação. Não é pouca coisa, no país onde nasceu e viveu até cinco anos atrás o Papa Francisco, que mantém vínculo assíduo com autoridades eclesiásticas e movimentos sociais. Nesta cruzada, a Argentina não está sozinha, já que o Uruguai legalizou o aborto em 2012 e a prática também é livre e legal em Cuba, Porto Rico e Guiana.

Os discursos de deputados a favor do projeto foram sólidos e difíceis de refutar, enquanto os opositores do aborto legal apostaram mais em teses religiosas e no lema “salvemos as duas vidas”, sem explicar como deixarão de morrer mulheres em abortos clandestinos. A deputada Victoria Donda, filha de presos políticos desaparecidos na última ditadura (1976-1983), trouxe ao debate o livro “O Conto de Aia”, da canadense Margaret Atwood, para enfrentar setores que, segundo ela, “não querem salvar duas vidas, querem manter o status quo atual, no qual as ricas abortam sem correr riscos e as pobres morrem”. O romance, vencedor de vários prêmios internacionais, fala sobre a subjugação das mulheres num mundo criado por Atwood no qual as férteis são estupradas e obrigadas a procriar por uma ditadura sinistra e cruel. A deputada argentina foi uma das mais aplaudidas, numa discussão maratônica que passará para a História.

 

Fonte: O Globo
Créditos: O Globo