PRECISAVA FALAR

‘SOU GAY E NÃO TENHO VERGONHA‘: Diego Hypolito conta pela primeira vez sobre como o sonho olímpico o fez esconder sua sexualidade

“Queria falar uma coisa para você”. Eu tinha 19 anos quando mandei essa mensagem para o celular do Michel Conceição, no quarto que a gente dividia no alojamento da seleção brasileira em Curitiba. Eu estava na cama de cima do nosso beliche, Michel estava embaixo.

“Eu já sei o que é”, ele mandou. Meu coração gelou. Mas segui em frente. “Eu acho que sou gay…” Lembrando assim soa engraçado. Eu acho?! Mas foi nessa época que comecei a ter certeza do que eu era. O Michel era querido por todos, um cara muito engraçado e popular. E abertamente gay. Por isso me senti à vontade para me abrir com ele.

Na mesma noite, ele me levou a uma balada gay, mesmo sendo proibido sair à noite na seleção. Eu fui todo disfarçado: boné, óculos escuros, capuz. Isso se repetiria nos anos seguintes, era ridículo. Meus amigos livres, leves e soltos e eu lá, cheio de roupas, suando no calor, virando a cara quando alguém fixava o olhar. Eu sempre morri de medo de me descobrirem.

Fui criado na igreja, tenho uma tatuagem de Jesus crucificado no braço, até hoje frequento cultos da Bola de Neve todas as quintas-feiras. Eu tinha vergonha porque na minha cabeça ser gay era ser um demônio, um ser amaldiçoado que vive em pecado. Quando eu tinha uns dez anos, um treinador foi dizer para a minha mãe que ela devia mudar minha educação para que eu não virasse gay. Ela veio falar comigo, preocupada. Eu era muito inocente, nem sabia o que era isso. Mas isso me marcou.

Quando passei a entender melhor a minha sexualidade, meu maior problema sempre foi como iria contar para a minha família. As pessoas não sabem, mas a gente tinha uma origem humilde, do interior e religiosa. Eles nunca entenderiam. A gente passava por tanta dificuldade em casa… nem sempre tinha o que comer, chegamos a ficar meses sem energia elétrica. Como é que eu ia levar mais um problema para eles? Eles tinham abdicado da vida deles em São Paulo para ir comigo e com a minha irmã Daniele para o Rio. Ia falar sobre sentimentos e coisas pelas quais eu passava sendo que eles tinham tantas preocupações mais sérias?

Eu vivi a solidão de não ter ninguém com quem eu pudesse compartilhar os dilemas de ser uma pessoa gay numa sociedade preconceituosa. Por mais que todo mundo tenha a impressão de que tem muito gay na ginástica, não tem. Todo mundo me zoava, zombava do meu jeito. Eu tinha o sonho de conseguir uma medalha olímpica e faria de tudo para chegar lá, até esconder quem eu era. Eu tinha certeza que se um dia eu saísse do armário publicamente, perderia patrocínios e minha carreira seria prejudicada.

A minha felicidade era a ginástica, então se eu não pudesse ser completo na minha vida pessoal, nem tinha tanto problema. Eu ia continuar a esconder a minha sexualidade para manter vivas as minhas aspirações no esporte. E deu certo, né? Uma medalha de prata em Olimpíada. Dois títulos e outras três medalhas em Mundiais. Mais 69 em Copas do Mundo.

Eu caí duas vezes em duas Olimpíadas, uma vez de cara, outra de bunda no chão, e enfrentei uma síndrome do pânico antes de conseguir a prata na Rio-2016 – contrariando as expectativas de todo mundo, menos as minhas. Realizei meu sonho e virei exemplo de superação para muita gente. Tenho muito orgulho do que fiz.

Mas odeio mentir. Uns anos antes, durante uma entrevista, um repórter do UOL havia me perguntado se eu era gay. Essa questão vinha circulando havia algum tempo na imprensa. Eu travei, mas respondi que não. Aquilo para mim foi péssimo. Desde então passei a pedir para meu assessor de imprensa evitar esse tipo de pergunta em contato com jornalistas.

Naquela época eu não tinha vontade de falar sobre isso, não tinha segurança, nem maturidade. Eu não estava pronto. Até que fui forçado a estar.

sobre sair do armário para a família

Quando eu era mais novo tinha graves problemas de autoestima. Tive mais problemas com relação a estética do que sexualidade. As pessoas diziam tanto que eu era feio que eu passei a acreditar. O pessoal da ginástica começou a me chamar de Frankenstein, e realmente passei a achar que eu era um monstro. Até que eu comecei a namorar um cara que eu achava ser muito mais bonito que eu. Eu tentei de inúmeras maneiras compensar esse desequilíbrio, até aplique no cabelo eu usava para esconder a calvície precoce. Por vários motivos, esse foi um relacionamento abusivo. Até que ele ameaçou terminar o namoro se eu não revelasse que era gay para a minha família.

Estava me preparando para o Mundial da China, em 2014, quando tomei coragem para contar para a minha mãe. Não tinha coragem de falar por telefone, então, de novo, escrevi uma mensagem. Disse que a amava muito, que esperava que isso não fosse mudar a nossa relação, porque eu continuaria a amando da mesma maneira. Eu era gay. E não um demônio.

Essa coisa de ser um demônio não saía da minha cabeça.

Ela ficou um tempo sem responder e quando respondeu não foi muito gentil. Sendo eu o filho mais próximo, deve ter sido muito difícil para ela também. Eu estava com muita vergonha de encarar a minha família. Eu me afastei deles por quase um ano, cheguei a perder um Natal por causa desse clima ruim. Meu pai reagiu melhor e a Daniele me apoiou incondicionalmente, disse que sempre soube mesmo sem eu nunca ter falado nada.

Foram anos e muita terapia, além da proximidade com outras pessoas gays, para que eu chegasse nesse ponto de ter a coragem de falar abertamente sobre a minha sexualidade. Acho que meu exemplo pode fazer com que muitos garotos que hoje estão sofrendo deixem de sofrer. Muitos não se aceitam como são ou não são aceitos pela família e têm pensamentos suicidas por não conseguirem corresponder às expectativas dos outros.

Quero que as pessoas saibam que eu sou gay e que eu não tenho vergonha disso. E não é porque eu sou que outras pessoas vão querer ser. Isso não tem nada a ver. Já vivi muitos anos pensando no julgamento que os outros fariam sobre mim. Hoje só aceito ser julgado por Deus.

Não sou uma pessoa sexual. Nunca fui de ficar com muita gente. Quando eu saía, minha diversão era simplesmente dançar. Eu fazia as coisas que me davam prazer, que era treinar e sair com os amigos. Eu inclusive sempre fui muito julgado na ginástica porque tinha vontade de sair. Mas eu só namorei duas mulheres e alguns poucos homens na vida. Meu namoro atual é muito mais leve, saudável.

Já não me acho mais o Frankenstein que eu via no espelho. Há uns dias fui à Tokka, uma festa gay em São Paulo. Aos 32 anos, fui pela primeira vez de cara limpa, sem disfarce, sem ter vergonha de ser quem eu sou, de viver o que eu quero viver. Para mim é uma libertação. Foi a primeira vez que realmente me diverti numa festa gay.

Agora posso até pensar em ir à Parada Gay. Quero frequentar com naturalidade os ambientes que antes frequentava com medo. Não vou levantar nenhuma bandeira, não vou ostentar nada, mas se alguém me perguntar o que eu sou, não preciso mais mentir. Não tenho mais vergonha.

Depois do estranhamento inicial, minha mãe me aceita como eu sou. Minha mãe me ama. E eu amo meus pais e tudo o que eles fizeram para que eu, minha irmã e meu irmão chegássemos até aqui. Não escolhi ser gay, porque ser gay não é uma escolha. É simplesmente o que eu sou, e isso não vai mudar os valores que eu tenho e que construí junto da minha família.

A gente está muito carente de ídolos de verdade. Por que eu não posso ser exemplo sendo gay? Uma coisa não tem nada a ver com a outra.

sobre inspirar outras pessoas

Esse era o último fantasma que eu precisava espantar de dentro de mim. No ano passado, revelei os abusos que sofri durante trotes que o pessoal da ginástica fazia com quem era mais novo. Já me prenderam em um equipamento de treino apelidado de “caixão da morte”, já me fizeram segurar uma pilha com o ânus e já me deixaram pelado, junto com outros dois atletas, para escrever no nosso peito a frase “Eu”, “sou”, “gay”. Uma palavra em cada um para nos humilhar.

Eu preciso falar sobre essas coisas para que elas nunca mais se repitam. Ninguém precisa passar pelo que eu passei para ser campeão. Não existe vitória a qualquer custo.

Sei que pode ter gente que vai deixar de gostar de mim depois de conhecer a minha história, sei que no culto posso viver situações de preconceito, sei que vir a público e falar tudo isso pode irritar algumas pessoas. Ninguém é obrigado a entender nada, mas é obrigado a respeitar.

Nunca mais vou deixar de viver o que eu sou. Eu sou gay.

Fonte: Universa
Créditos: UOL