"Sou Macabéa, sou Querência, sou Pacarrete, sou Marcélia Cartaxo"

Marcélia Cartaxo é ovacionada no Festival de Gramado por performance em 'Pacarrete'

Premiada no Festival de Berlim em 1985, atriz interpreta uma mulher vivendo num mundo poético no interior do Ceará

 O dia amanheceu com uma nova estrela na cidade:Marcélia Cartaxo . Na noite de terça-feira, a paraibana, vencedora do Urso de Prata de melhor atriz noFestival de Berlim por “A hora da estrela” (1985), de Suzana Amaral, foi aplaudida de pé, aos gritos de “viva Marcélia”, por causa de sua performance arrebatadora e emocionante em “Pacarrete”, longa de estreia do cearense Allan Deberton, exibido em competição no 47º Festival de Gramado .

Marcélia, de 55 anos, dá vida à protagonista com graça e empatia. O público ria com seus trejeitos exagerados e falas absurdas, ao mesmo tempo em que sentia uma compaixão profunda. Quando saiu do Palácio dos Festivais, a multidão rodeou e aplaudiu mais uma vez a artista, que saiu de Cajazeiras, onde nasceu, para estrear nos cinemas como Macabéa, personagem da obra-prima de Clarice Lispector, papel que lhe rendeu o primeiro de quatro Candangos no Festival de Brasília, incluindo a viúva Querência de “A história da eternidade” (2014), do pernambucano Camilo Cavalcante. Emocionada, foi abordada por Lázaro Ramos, que lhe perguntou: “Você tem ideia da atuação que acabou de dar?”.

 Sou Macabéa, sou Querência, sou Pacarrete, sou Marcélia Cartaxo, sou todas as personalidades populares que hoje são rejeitadas — diz a atriz.

Quem é Pacarrete?

Uma mulher que realmente existiu, professora de Fortaleza que voltou a Russas para cuidar da irmã doente. Amava as músicas francesas. Morreu com 82 anos, forte, resistente, louca. Virou uma das muitas figuras lendárias do interior nordestino. Foi rejeitada por todo mundo, mas não a julgo, porque ela já foi jovem e passou por experiências arrebatadoras como todos nós.

Como foi interpretá-la?

Tive muito medo de fazer uma personagem com um tom lá em cima, fora da minha zona de conforto. Aprendi balé, foi cansativo e doloroso, tomei analgésicos para ficar na ponta dos pés. Aprendi um pouco de francês, que eu já deveria falar desde que recebi aquele prêmio na Alemanha ( o Urso de Prata ). Artista é preguiçoso, né? Precisei mudar a voz, o que me incomodou muito, senti insegurança de não atingir o que eu queria.

Tem um pouco de Marcélia na Pacarrete?

Quando saí do Rio e voltei para a Paraíba, há 15 anos, para ficar com meus pais, que estavam velhinhos, fiquei desesperada. Passei dois anos perturbada, achava que estava fora do mercado. No Rio, ia a shows, peças e estreias. Lá, o ritmo é diferente. Mas artista luta e resiste, como Pacarrete.

Na sessão, você disse que protagonizar cinema é “questão de sorte”. Por quê?

Não só por causa do mercado, mas também por preconceito. Houve um tempo em que as pessoas só enxergavam beleza e atributos físicos, e isso eu não tenho. Só tenho minha sensibilidade e minha experiência de interpretação, que iniciei aos 12 anos num teatrinho da Paraíba.

Como foi o começo?

Sofri muito. Quando tive coragem de largar tudo e ir para São Paulo fazer “A hora da estrela”, meus pais não aceitavam. Não sabiam e nunca souberam quem era Suzana Amaral. Compreenderam minha escolha antes de morrerem, recentemente, porque eu já me sustentava e ajudava a família. Nordestino é um bicho resistente. Veio daí minha sensibilidade pelos mais necessitados. Dói quando atacam o Bolsa Família, quando desrespeitam os quilombolas e negros, a quem devemos tanto. Quando era pequena, andava muitas léguas até chegar ao sítio do meu avô, de madrugada. Sei como é a vida do trabalhador. O país rejeita o Nordeste politicamente, mas sabemos votar. Sofremos com a seca porque políticos quiseram. Agora temos que mostrar por que merecemos direitos iguais. Pra mim é um orgulho representar no cinema o Nordeste, um lugar tão profundo.

Qual a diferença entre o preconceito lá do começo e o que existe hoje contra a classe artística?

Poucos anos depois de “A hora da estrela”, a Embrafilme acabou, o cinema brasileiro quase desapareceu. Não entendia de política cultural, editais, de onde vinha o dinheiro. A diferença é que agora temos compreensão do desmonte na cultura. Já dirigi três curtas e pretendia inscrever um longa num edital, mas tem muita coisa parada. Perdi o trabalho em três longas que faria em Recife. Leio as notícias e sinto angústia e impotência, tenho vontade de gritar que nem Pacarrete. Não sei como será daqui pra frente. Vivo da minha arte, e isso está minguando. A gente envelhece e fica mais esquecido, me preocupo com isso. Aqui em Gramado, vi uma nova geração de artistas, mas cadê as pessoas antigas do cinema? Cadê Assunção Hernandes ( produtora ) e João Batista de Andrade ( cineasta )? Onde é que se vê filmes antigos?

“A hora da estrela” repercute entre os mais jovens?

Sim, e é lindo. É um filme de mulher, atuante e atual. As pessoas não gostariam de estar na pele da Macabéa. Acham ela engraçada até que uma hora não conseguem mais rir dela, que nem acontece com Pacarrete.

Fonte: Metrópoles
Créditos: Metrópoles